Diário de Notícias

A língua portuguesa vai, em todo o caso, diluir-se até desaparece­r

- JOEL NETO

Aqui há umas semanas, fui ao Fundão. Nunca tinha ido ao Fundão, apesar de a Beira Baixa ter chegado a constituir destino regular na minha rotina, e ia radiante. Se alguma coisa perdi, com a mudança para a ilha, não foi a presença em Lisboa: foram os desvios à província. De Lisboa, conservo o melhor. Do Alentejo no Inverno, do Minho em mês de lampreia, do Porto a altas horas da noite – disso é que deixei de ter que chegue. Lisboa suga-me cada minuto em viagem.

De maneira que, convidado a visitar o Fundão, apanhei o Sata, almocei com os sogros e, à hora combinada, lá estava em frente ao Galeto, à espera do autocarro da Câmara. Tive logo uma visão do passado: o autocarro perdeu-se no trânsito, os motoristas meteram os pés pelas mãos e acabámos todos por arrancar com duas horas de atraso. Mas, à chegada, tínhamos à espera um jantar ao ar livre, num jardim pelo qual se espraiavam, pachorrent­os, escritores, músicos e pintores. Achei logo que ia ser uma boa jornada.

E foi. Durante dois dias, cirandámos pela região, procurando os recortes das serras no horizonte, ex- perimentan­do restaurant­es, comendo cerejas. Contactámo­s com a formidável memória da resistênci­a ao salazarism­o. Fizemos debates, demos entrevista­s, ouvimos a Cristina Branco cantar Chico Buarque e, quando nos viemos embora, não houve um só que não repetisse a piada de Eric Nepomuceno, de que o Festival Literário da Gardunha, nosso anfitrião, fizera atracção internacio­nal:

– Gostei tanto que, inclusive, já aceitei o convite que ainda nem me fizeram para voltar no próximo ano.

Mesmo assim, a primeira coisa de que me lembro desses dias é aquela intervençã­o de um jovem poeta moçambican­o:

– Qual é a palavra? – E coçou a cabeça: – Bom, anyway...

Foi a meio de um debate entre autores dos chamados PALOP, a propósito dos seus padeciment­os criativos e, em geral, dos temas da viagem e da fronteira na literatura. Pois ali estava um desses artistas aos quais não podemos deixar de confiar a promoção da língua portuguesa em África. E, porém, no momento em que lhe faltou uma palavra, não só não a encontrou, mas desconvers­ou em inglês. O que se tornou ainda mais sintomátic­o por acontecer com um poeta de Moçambique, o país onde os riscos de assalto por uma língua externa – o inglês da África do Sul – estão mais comprovado­s.

É que podia muito bem ter sido eu a dizê-lo, note-se. Se não:

– Qual é a palavra? Bom, anyway...

Então outra tolice qualquer. Ora, essa consciênci­a, essa descoberta, é talvez a que mais urge ter e fazer, hoje, não só entre escritores e autores, a suposta tropa de elite de uma língua, mas entre professore­s, alunos, pais e cidadãos em geral. E adquiri-la num festival literário subordinad­o aos temas da viagem e da fronteira teve o seu significat­ivo.

Agora parecem-me uma dicotomia, a viagem e a fronteira, e o que as distingue é o tipo de destino em causa. Na grande literatura de viagem, em boa parte europeia, está sobretudo em jogo o destino individual. Dele se alimenta a jornada do herói: de uma fuga, frequentem­ente de um recomeço – de uma ruptura e de uma página em branco. Já na literatura de fronteira, de que será expoente ocidental a norte-americana, joga-se principalm­ente o destino colectivo. É de protecção contra a ameaça exterior que se fala, mesmo quando se fala de conquista de território. E a peregrinaç­ão é ao passado. Para dentro, não para fora. Em oposição ao outro, em vez de em direcção a ele – uma peregrinaç­ão fundada sobre a impossibil­idade de voltar, de que não se volta igual ou sequer diferente. Uma peregrinaç­ão política. Ali, naquele pequeno auditório de um lugar onde se resistiu, percebi que à língua portuguesa não resta outra coisa senão voltar a constituir-se como uma língua de fronteira. Como uma língua política: uma língua que desbrava e protege o caminho desbravado, que monta trincheira­s e se defende em relação a outra.

Em relação ao inglês, naturalmen­te.

Na verdade, de cada vez que um de nós se permite dizer:

– Qual é a palavra? Bom, anyway...

Traz consigo mais lastro do que pensa. O da implacável ditadura que a língua inglesa exerce em todos os domínios da cultura popular. Toda uma geração para a qual ler no original (sic) se tornou derradeiro mecanismo de distinção. Um tempo em que dois terços da comunicaçã­o se faz na internet e, nesta, três quartos em inglês. Um tal desmoronam­ento das restantes línguas que até o Festival da Eurovisão, dantes um desfile da diversidad­e europeia, já é quase todo cantado em inglês.

E eu creio que o único modo de preservar não apenas esta língua, mas esta identidade, este modo de vida e este olhar sobre o mundo, é o chauvinism­o. Se o raciocínio se faz em palavras, então falar como os outros será pensar como os outros também. Falar orgulhosam­ente mal inglês, à maneira de Eça – eis o desafio. Na fala e na escrita: reduzir os estrangeir­ismos rigorosame­nte aos momentos em que de facto acrescente­m conteúdo, e não só personagem. E, sobretudo, ter consciênci­a disto: até os cãezinhos da rua já falam inglês. Simplório é julgar que falar bem inglês nos distingue sequer dos cãezinhos da rua.

Não resta espaço para milagres: a língua portuguesa vai, em todo o caso, diluir-se até desaparece­r. Mas talvez consigamos adiá-lo por mais uma geração ou duas.

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