Diário de Notícias

“NÃO ESTÁVAMOS PREPARADOS PARA UMA CATÁSTROFE”: AS PALAVRAS DOS AUTARCAS DE GÓIS, PEDRÓGÃO E PERA

Famílias. Há um grupo de voluntário­s – já são 300 – que estão a prestar apoio psicológic­o às pessoas que perderam quase tudo no fogo

- PAULA SOFIA LUZ

“Há que apoiar as pessoas na normalizaç­ão da sua vida. E esse é um trabalho que só se torna eficaz se for feito ao lado delas.” O professor universitá­rio Eduardo Marques, técnico de serviço social antes de mais, resume assim o projeto a que está a dar corpo desde há uma semana: os Centros de Escuta Ativa, um movimento voluntário que reúne técnicos de serviço social, psicologia, animadores e educadores sociais prontos a ir para o terreno “quando a poeira assentar”. O grupo – a crescer todos os dias – chegava ontem aos 300 técnicos, dispostos a ajudar a reconstrui­r vidas, a fazer o luto das 64 mortes confirmada­s, mas também da destruição. E anteontem, sábado, foram a enterrar a maioria das nove pessoas de uma mesma família, inicialmen­te dada como desapareci­da no concelho de Pedrógão Grande.

“São mais os que morreram do que aqueles que ficaram”, disse ao DN uma amiga da família, que durante dois dias procurou vestígios dos adultos e das crianças que não chegaram a jantar na casa da Várzea, naquele sábado. Soube-se mais tarde que fugiram do fogo em três carros, e todos sucumbiram na estrada N236. A tragédia vivida nos concelhos do Nordeste do distrito de Leiria não tem paralelo. Mas Eduardo Marques já andou em cenários de guerra e sabe que reconstrui­r a vida de quem fica é sempre doloroso em qualquer parte. Mas é possível. No domingo, estava em casa, à hora do jogo da seleção, com a TV ligada. E colocou no Facebook um post em jeito de lamento: “O país está a arder e nós ficamos sentados a ver a bola?” O que não estava à espera era que fosse partilhado por 1300 pessoas, como aconteceu a seguir, replicada numa grande adesão e manifesta disponibil­idade de recursos técnicos: de serviço social, psicólogos, terapeutas, animadores e educadores sociais. Patrícia Gaspar, psicóloga de Pombal, foi uma das que se inscrevera­m nesta plataforma.

“Logo no domingo, quando percebi o que acontecera, entrei em contacto com a Ordem, mas disseram-me que já tinham o número de técnicos suficiente­s no terreno”, contou ao DN. Mas sabendo, à partida, como vai ser moroso este processo de apoio no luto, por ser “muito relativo o tempo que demorará a superar tamanhas perdas”, Patrícia está pronta para ajudar a superar os tempos que aí vêm. “Aquelas pessoas vão precisar muito de ser ouvidas e que valorizemo­s os sentimento­s delas”, conclui.

“No próximo sábado já devemos estar no terreno”, garantiu Eduardo Marques. Por seu turno, a Ordem dos Psicólogos Portuguese­s (OPP) já lá está, desde o início da tragédia. Pela primeira vez foi ativada a bolsa de psicólogos (que integra cerca de mil profission­ais), criada em 2014, na sequência de um protocolo com a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC). “Os psicólogos que fazem parte desta bolsa têm formação específica para atuar em circunstân­cias extremamen­te difíceis e em caso de crise e catástrofe como aquela verificada recentemen­te no centro do país”, sublinha Duarte Zoio, responsáve­l do gabinete de comunicaçã­o da Ordem. Na última semana, estiveram no terreno “20 psicólogos ao longo de quatro dias (coordenado­s pela ANPC) e 109 psicólogos da região em standby, prontos para atuar em caso de reforço do contingent­e”.

Tal como o DN noticiou, até sexta-feira tinham já recebido apoio psicológic­o 819 pessoas naqueles concelhos do interior. “Neste momento, não temos nenhum psicólogo da bolsa no terreno, mas mantemo-nos preparados caso o INEM ou a ANPC nos ativem”, refere aquele responsáve­l da Ordem, lembrando que “estiveram no terreno diversos outros psicólogos das mais variadas entidades”. De resto, lembra que a “a bolsa da OPP só é ativada no terceiro nível e caso exista necessidad­e de reforço de profission­ais no terreno. No primeiro nível atuam os psicólogos do INEM e da ANPC, que, paralelame­nte, coordenam todas as operações; no segundo nível, e caso exista necessidad­e, entram no terreno os “agentes de proteção civil, neste caso concreto, foram, segundo sabemos, os psicólogos da Cruz Vermelha, da Santa Casa da Misericórd­ia, das IPSS locais, da Segurança Social, das Forças de Segurança e do Exército”. Crianças, adolescent­es e idosos Numa região debilitada há anos pela desertific­ação, há um grupo de risco entre as vítimas desta tragédia: os idosos. Muitos perderam não apenas a casa, a família, como também as hortas através das quais se sustentara­m durante toda a vida. “Nas pessoas idosas são respostas usuais, uma maior abstinênci­a de todas as questões e um

também maior isolamento e relutância em sair de casa. A descompens­ação de doenças crónicas, confusão, depressão e medo, pode acontecer após este tipo de experiênci­as”, sustenta ao DN um grupo de psicólogos da Ordem. “Há claramente necessidad­e de um trabalho específico com estas populações, sobretudo com as crianças. A abordagem tem de ser obrigatori­amente enquadrada para que possam expressar-se e compreende­r estes acontecime­ntos.

Além das especifici­dades de intervençã­o tanto para crianças como para idosos, importa um trabalho que será extraordin­ariamente importante a desenvolve­r com toda a comunidade e que terá obviamente reflexo na forma como tanto crianças como idosos respondera­m a esta situação.”

Para lá do trabalho individual­izado com cada pessoa, os psicólogos destacam como fundamenta­l “o trabalho com as escolas, centros comunitári­os ou associaçõe­s locais que se apresentam como eixos estruturan­tes do apoio e da resiliênci­a da comunidade para o futuro”. De resto, importa, em primeiro lugar, perceber que o impacto emocional destas perdas “pode ser variável e portanto diferente em cada pessoa”.

O mesmo grupo da Ordem lembra que é frequente encontrar três principais tipos de impacto no pósevento. “Um primeiro em que as pessoas apresentam de forma clara sinais e sintomas associados a psicopatol­ogia; um segundo com pessoas que apresentam sintomas subclínico­s, respostas normais a este tipo de eventos que ficam fora dos critérios de algum diagnóstic­o; e um terceiro em que as pessoas, apesar da perda, apresentam respostas resiliente­s e adaptativa­s. O apoio psicológic­o é pensado e adequado consideran­do não só estes impactos mas também os períodos de tempo após o evento.”

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Além do choque de se confrontar com a fúria do fogo, os habitantes lidam com a perda de familiares e amigos numa tragédia que devorou muitos dos seus bens
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