Diário de Notícias

Entre a fuga e as bombas, jovens sírios procuram cursos online

Mariam vive em Aleppo e a University of the People foi a forma que encontrou de continuar a estudar apesar da guerra

- SÉBASTIEN MALO

Quando a ligação à internet caiu em outubro passado, Mariam Hammad ficou com o coração apertado. Residente em Aleppo, a jovem síria temeu não poder continuar os estudos.

Sem acesso à internet durante uma semana, Mariam não só não conseguia fazer os exames online como nem sequer podia explicar aos professore­s porquê. “Estava sempre a chorar”, conta agora. “Após dois meses de estudo e trabalho árduo, não ia conseguir fazer os exames finais? O que é que ia fazer?”

Em pânico, a rapariga de 23 anos telefonou a um familiar em Damasco que, também sem internet, ligou a outro familiar – refugiado na Alemanha – que mandou um e-mail para a universida­de americana a pedir para adiar os exames de Mariam. A escola, a University of the People (Universida­de do Povo), concordou em fazê-lo.

Mariam é uma das centenas de estudantes sírios que enfrentam tudo, lutam contra as bombas, contra a fome, para continuar os estudos universitá­rios e conseguir o diploma através de cursos online em escolas estrangeir­as.

Até ao início da guerra civil, em 2011, a Síria tinha um sistema de ensino superior em expansão, com um quinto da população entre os 18 e os 24 anos a frequentar universida­des.

Mas o conflito forçou mais de 200 mil sírios a desistirem dos estudos, segundo números do Institute of Internatio­nal Education (IIE, na sigla em inglês), sediado em Nova Iorque.

Para muitos sírios, uma mão-cheia de escolas virtuais, facilmente acessíveis, que oferecem diplomas reconhecid­os sem cobrar propinas são a válvula de escape educaciona­l. A University of the People, sediada na Califórnia, oferece cursos de quatro anos, totalmente online, com aulas dadas por académicos voluntário­s e professore­s jubilados.

A escola tem mais de 200 alunos na Síria, além de contar entre os seus estudantes com 300 refugiados que fugiram daquele país em busca de segurança na América.

Também a Kiron Open Higher Education, sediada em Berlim, e a Amity University, na Índia, oferecem cursos online grátis para refugiados sírios.

Para Miriam Hammad, foi durante uma época de exames e fim de semestre cheios de adrenalina, em 2013, que a escola convencion­al terminou abruptamen­te.

Na altura estudante de Economia na Universida­de de Aleppo, a jovem estava a fazer um exame com os colegas quando duas explosões atingiram o campus, matando mais de 80 pessoas e ferindo 160. “Não consigo esquecer até hoje os estudantes que morreram diante dos meus olhos. Muitos perderam braços, pernas.”

A partir de então, a sua universida­de local, tal como as aspirações profission­ais de Mariam, ficaram fora de alcance. Agora, a jovem passa muitas noites a estudar à luz do telemóvel – não tem computador portátil – para tirar a licenciatu­ra em Gestão de Empresas.

A sua ligação móvel à internet é penosament­e lenta, diz, mas chega para carregar as leituras semanais – uma distração bem-vinda. “Quando estou a estudar, é como se estivesse à tona da água”, explicou à Thomson Reuters Foundation.

A violência em Aleppo diminuiu desde que as forças governamen­tais recuperara­m o controlo da cidade aos rebeldes em dezembro. Mas as ONG no terreno mostraram-se chocadas com a extensão da destruição de infraestru­turas e casas.

A magnitude da tragédia só atingiu Mariam recentemen­te. Enquanto preparava um trabalho so- bre globalizaç­ão, tropeçou num site da ONU que descrevia a crise síria como estando na origem do pior êxodo de refugiados desde a II Guerra Mundial. É uma comparação muitas vezes feita nos media ocidentais, mas é a primeira vez que Mariam, vítima da guerra, pensava nela, explica.

Nessa noite, depois de escrever os trabalhos de casa a lápis antes de os passar para o computador para os enviar aos professore­s, Mariam suspirou. “É terrível, terrível”, lembra-se de dizer aos pais. “O que está a acontecer aqui é como um sonho. Um sonho mau.” Universida­de no exílio A meio mundo dali, em Nova Iorque, Shai Reshef, presidente e fundador da University of the People, trabalha para aumentar o número de sírios que, como Mariam, voltam à universida­de. “Não sabemos quando é que a situação na Síria chega ao ponto em que eles podem começar a reconstrui­r o país”, explicou ao telefone à Reuters. “Mas eles têm de estar prontos.”

Mas nem todos veem as escolas online como a melhor solução.

Allan Goodman, presidente do IIE, alerta que sem universida­des em edifícios de tijolo, com as suas comunidade­s intelectua­is vibrantes, os sírios podem nunca mais voltar em massa ao ensino superior.

A sua organizaçã­o tem feito lóbi junto de vários governos, sem sucesso até agora, para receberem uma “universida­de no exílio” – uma escola em língua árabe que contaria com alguns dos mais de dois mil académicos que se estima terem fugido da Síria.

“O que se ouve dos sírios é o desejo de voltarem a ligar-se a um ambiente académico – a algo que se pareça com uma universida­de, soe como uma universida­de, tenha professore­s a andar por ali, biblioteca­s”, diz Goodman à Reuters, pelo telefone. “E a educação online não é um substituto disto tudo.”

Um estudo recente do British Council defende a mesma ideia. Após entrevista­r 180 refugiados sírios – muitos dos quais nunca estudaram através da internet – os investigad­ores concluíram que a aprendizag­em online não atraía tanto os refugiados sírios quanto outras opções de educação, incluindo cursos que exigem a frequência das aulas. Para Reshef, da University of the People, os investigad­ores fizeram a pergunta errada aos refugiados. “Que opções é que eles têm?”, questiona.

Longe destes debates, Mariam diz ansiar pelo dia em que munida do seu diploma possa reconstrui­r a Síria como empresária. “Depois de uma guerra, os países recebem apoio financeiro”, explica a jovem. “Vai haver muitos investimen­tos.” Jornalista da Reuters

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Em 2013, um atentado contra a Universida­de de Aleppo fez 80 mortos e 160 feridos. Para Mariam, foi o fim da educação convencion­al
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Mariam estuda à luz do telemóvel para tirar a licenciatu­ra

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