O mundo dentro de uma voz
Vale muito a pena apanhar Silvia Pérez Cruz num dos concertos portugueses. Uma carreira feita de derivas felizes
Há aqueles que escolhem a via local, única, com centro perfeitamente definido, para expressarem o talento e a sensibilidade que possuem. Preferem vincar a diferença, a autonomia, o contraste, como forma de definir uma personalidade que também se apresenta pelo contraste com o que as rodeia. Se quisermos mergulhar na música que se faz em Espanha, há belos exemplos: Paco De Lucia chamou a si as virtudes inquietas dos andaluzes e estilhaçou fronteiras, mas sempre dentro do flamenco. Já Pi de la Serra simboliza, nas cantigas, aquilo que muitos dos seus conterrâneos catalães perseguem na “sociedade civil”. Paco Ibañez é outra figura que, mais do que numa região, assentou praça num estilo, num princípio, numa espécie de manifesto que se vai desdobrando de cantiga para cantiga. Silvia Pérez Cruz, catalã nascida em Palafrugell, Gerona, há 34 anos, segue em sentido contrário: a cada disco, a cada passo, sem perder de vista o “norte magnético” de um bússola pessoalíssima, a cantora e criadora parece aproveitar na plenitude o multiculturalismo que está ao seu dispor nesse universo complexo que é o espanhol, em que um espírito atento e aberto pode ir colhendo ideias e modelos em cada viagem ensaiada, para depois os transformar à sua medida. Há, neste enunciado relativamente simples (no papel, claro…), um pormenor que convém não perder de vista e que o mais recente disco de Silvia, Vestida de Nit, vem confirmar em cheio: a mão-cheia de oportunidades distribuídas por Espanha não é suficiente e, assim sendo, parte-se à conquista do resto. Ou seja, do mundo.
Explicam-nos que este disco – o quarto do percurso de Pérez Cruz, se quisermos atender às edições na primeira pessoa – parte de uma “encomenda” feita à artista para preparar um concerto acústico num ciclo de música clássica na Sala de Câmara do Auditório Nacional da Música de Madrid. Essa proposta, pela simples forma, já vinos nha acrescentar muito ao caminho percorrido, que inclui um disco em dueto com o produtor Raul Fernandez Miró (o notável Granada, de 2014, em que era possível “reencontrar” criações de consagrados catalães como Lluis Llach ou Albert Pla, este infelizmente desconhecido entre nós, mas também enormes saltos geográficos, temporais e estéticos, viáveis com os nomes de Robert Schumann, Edith Piaf ou Violeta Parra) e outro (Domus, 2016) que serve de banda sonora ao filme Cerca de Tu Casa, que valeu a Silvia uma dupla presença peculiar nas nomeações para os prémios Goya deste ano, vencendo na categoria de Canção Original (cinco anos depois de ter triunfado no mesmo segmento, mas no filme Blancanieves) e inscrevendo o seu nome como finalista para o troféu de atriz revelação. Arma de pontaria Regressemos, então, a Vestida de Nit, o álbum que serve de base às apresentações de Silvia Pérez Cruz em Portugal, iniciadas no mês passado em Évora e agora prosseguidas em mais três frentes. Se a contenção extraordinária e a instrumentação reduzida ao essencial já vinham de trás, aqui se vê subir a fasquia, com a elegante mas assertiva contribuição de um quinteto de cordas (os violinos de Elena Rey e de Carlos Montfort, a viola de arco de Anna Aldomà, o violoncelo de Joan Antoni Pich e o contrabaixo de Miguel Angel Cordero), que tão depressa solta a música como parece responsabilizar-se por uma compressão quase claustrofóbica. Quanto ao reportório, há – sem prejuízo de um espantoso equilíbrio, só característico dos álbuns que conseguem somar a urgência no contacto à tendência para uma invejável longevidade – três momentos que ressaltam, que emergem do bloco proposto: uma abordagem singular, magoada, radical a Hallelujah, uma das canções eternas do não menos eterno Leonard Cohen; uma aproximação ao universo português, com uma variação de intensidade máxima de Estranha Forma deVida, fado de palavras irrepetíveis, escritas por Amália; por fim, píncaros do improvável, até por dispor do mais composto e “bem acabadinho” de todos os arranjos, lá paira um tema que, mesmo involuntariamente, associamos a uma moda repetitiva – e cansativa, sejamos honestos – que aqui ganha direito à total transfiguração: Lambada (Chorando Se Foi). Se Silvia Pérez Cruz se regesse pelos palpites alheios, aqui não teria, presume-se, um voto expresso a favor desta hipótese. Mas é ouvi-la…
Depois, à laia de contributos para uma melhor compreensão, passe-se em revista a vida de Silvia, no que à música diz respeito. Saberemos, então, que desde menina estudou solfejo, piano clássico e saxofone, que se licenciou em canto jazz, que a sua voz já serviu nomes notáveis da dança contemporânea e do flamenco dos nossos dias (Damián Muñoz, Israel Galván, Sol Picó). Mais constataremos que a sua inquietação a leva a abraçar projetos tão distintos como Llama (um duo vocal), Coetus (uma orquestra de percussão ibérica), Xalupa (dedicado à música tradicional catalã) ou Refree (a meias com o já referido Raul Fernandez Miró). Além dos discos próprios, grava com os grupos Las Migas (um quarteto feminino que assenta arraiais em Barcelona) ou Llana (virado ao improviso), bem como em parceria com Javier Colina (boleros adaptados ao modelo jazz). A passada é avassaladora, a fragilidade aparente dá lugar a uma figura que não se sabe nunca onde pode “acabar”. Para já, aproveitemos bem esta escala de uma mulher que vai continuar a crescer. E que, munida de total sinceridade, disse numa entrevista ao Público: “Não tenho cautelas nem cuidados com aquilo que canto.” Façamos fé dessa afirmação, para acrescentar só isto: nem precisa de ter, que, para melhor, já basta assim.
SILVIA PÉREZ CRUZ
Hoje, Teatro Aveirense, Aveiro. 21.30. Bilhetes a 15 € Dia 29, Teatro José Lúcio da Silva, Leiria. Bilhetes a 12,50 € Dia 29, Centro Cultural de Belém, 21.00. Bilhetes de 15 € a 35 €