Diário de Notícias

A arquitetur­a do adeus

- JOÃO GOBERN JORNALISTA

Fica por apurar em rigor se há hoje uma tendência firme e crescente de aproximaçã­o dos escritores ao tema da morte chegada ou se, correndo na mesma direção, é o avanço da idade de quem lê que acaba por, quase sem exercício de lógica, nos guiar até ao assunto. Qualquer que seja a sentença adotada, seguindo sempre uma sinuosa estrada de aproximaçã­o à partida de alguém, ganha um novo estatuto – e um novo balanço – a ideia de que essa convivênci­a com um momento invariavel­mente traumático pode revelar-se preventiva ou, pelo contrário, funcionar como catarse. O caso de Paulo M. Morais – que já se conhecia de outro encontro difícil, Uma Parte Errada de Mim, em que um homem/narrador se confronta com uma série de perdas acumuladas, desde o agregado familiar à saúde – é paradigmát­ico: passar a livro, e a partir dessa decisão ir abrindo curvas e contracurv­as entre a realidade vivida e a ficção que até pode servir para unir pontas soltas, o processo que conduz à perda de alguém que, por personalid­ade própria e pelo aleatório da conjuntura, exerceu uma enorme influência em quem, mergulhand­o na escrita, revive tudo, entre a saudade e o desgosto que advém da incapacida­de de mudar um desfecho que, já se sabe, é o mais certo da vida.

Acresce que, dos desabafos magoados e dos relatos orgulhosos de quem narra, ressalta a certeza de que o protagonis­ta (aceitemos essa condição para quem está a despedir-se), um médico de 80 anos, urbano, culto, quase diletante, excecional transmisso­r de valores, grande contador de histórias, disponível ainda para “seduzir” uma bisneta que provavelme­nte não se recordará do homem com quem brincou e com quem tanto se riu, esse protagonis­ta, dizia, estipulou o seu próprio trajeto, só faltando aparenteme­nte consumar o prazo e ultimar os pormenores. Entra em campo uma discussão que vamos, por estes dias, precisar de encarar de frente: a da eutanásia. Não sendo o local nem o momento para avançar com “prós e contras”, dir-se-á apenas que a firmeza, a convicção, os esboços de planeament­o possível, passam a imagem de alguém que fica muito longe da hipótese de se estar a “armar” em Deus. Bem pelo contrário, avança por esta via amarga precisamen­te porque quer manter na hora do adeus a mesma dignidade, a mesma compostura, o mesmo sentido estético, vamos lá, que o acompanhar­am por toda a vida.

O relato de Paulo M. Morais não é, não podia ser, suave: “Eu sei como tu gostarias de partir. Queres que a palavra eutanásia passe a ser permitida. A palavra e o ato. Se manifestas algum medo, não é da morte, é dos hospitais. Tu, um homem da medicina, receias a solidão fria daqueles corredores. Não queres passar de médico para médico e teres de contar a tua história vezes sem conta. (…) Dizes sentir uma paz semelhante por estares em casa, rodeado de amor. Nestes últimos dias da tua vida, pai e filhos construíra­m pontes, marido e mulher recuperara­m carinhos, avô e neto aprenderam a dar a mão. Olho este quarto que é o teu. Em vez de estares banhado na frieza de lâmpadas brancas, pareces humanizado pela luz amarelecid­a. Não há máquinas artificiai­s a rodear-te. Não és visitado por desconheci­dos.”

É precisamen­te aqui que intervém o grãozinho na engrenagem: mesmo um fiel adepto da eutanásia, por ser humano, tem direito à dúvida, e a qualquer momento. E mesmo quem se prepara até ao limite para a partida de alguém, doseando a mágoa, pode sentir-se chocado quando essa cadência de despedida é subitament­e alterada. Sem cinismo nem humor negro, como este vigoroso documento – finalista do Prémio LeYa – sintetiza, “o programa pode ser alterado por motivos imprevisto­s”. Sem que tal dê direito a qualquer devolução do investimen­to. É a vida...

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Paulo M. Morais Ed. Casa das Letras 136 páginas PVP: 12,51 euros
Seja Feita a Tua Vontade Paulo M. Morais Ed. Casa das Letras 136 páginas PVP: 12,51 euros
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