A arquitetura do adeus
Fica por apurar em rigor se há hoje uma tendência firme e crescente de aproximação dos escritores ao tema da morte chegada ou se, correndo na mesma direção, é o avanço da idade de quem lê que acaba por, quase sem exercício de lógica, nos guiar até ao assunto. Qualquer que seja a sentença adotada, seguindo sempre uma sinuosa estrada de aproximação à partida de alguém, ganha um novo estatuto – e um novo balanço – a ideia de que essa convivência com um momento invariavelmente traumático pode revelar-se preventiva ou, pelo contrário, funcionar como catarse. O caso de Paulo M. Morais – que já se conhecia de outro encontro difícil, Uma Parte Errada de Mim, em que um homem/narrador se confronta com uma série de perdas acumuladas, desde o agregado familiar à saúde – é paradigmático: passar a livro, e a partir dessa decisão ir abrindo curvas e contracurvas entre a realidade vivida e a ficção que até pode servir para unir pontas soltas, o processo que conduz à perda de alguém que, por personalidade própria e pelo aleatório da conjuntura, exerceu uma enorme influência em quem, mergulhando na escrita, revive tudo, entre a saudade e o desgosto que advém da incapacidade de mudar um desfecho que, já se sabe, é o mais certo da vida.
Acresce que, dos desabafos magoados e dos relatos orgulhosos de quem narra, ressalta a certeza de que o protagonista (aceitemos essa condição para quem está a despedir-se), um médico de 80 anos, urbano, culto, quase diletante, excecional transmissor de valores, grande contador de histórias, disponível ainda para “seduzir” uma bisneta que provavelmente não se recordará do homem com quem brincou e com quem tanto se riu, esse protagonista, dizia, estipulou o seu próprio trajeto, só faltando aparentemente consumar o prazo e ultimar os pormenores. Entra em campo uma discussão que vamos, por estes dias, precisar de encarar de frente: a da eutanásia. Não sendo o local nem o momento para avançar com “prós e contras”, dir-se-á apenas que a firmeza, a convicção, os esboços de planeamento possível, passam a imagem de alguém que fica muito longe da hipótese de se estar a “armar” em Deus. Bem pelo contrário, avança por esta via amarga precisamente porque quer manter na hora do adeus a mesma dignidade, a mesma compostura, o mesmo sentido estético, vamos lá, que o acompanharam por toda a vida.
O relato de Paulo M. Morais não é, não podia ser, suave: “Eu sei como tu gostarias de partir. Queres que a palavra eutanásia passe a ser permitida. A palavra e o ato. Se manifestas algum medo, não é da morte, é dos hospitais. Tu, um homem da medicina, receias a solidão fria daqueles corredores. Não queres passar de médico para médico e teres de contar a tua história vezes sem conta. (…) Dizes sentir uma paz semelhante por estares em casa, rodeado de amor. Nestes últimos dias da tua vida, pai e filhos construíram pontes, marido e mulher recuperaram carinhos, avô e neto aprenderam a dar a mão. Olho este quarto que é o teu. Em vez de estares banhado na frieza de lâmpadas brancas, pareces humanizado pela luz amarelecida. Não há máquinas artificiais a rodear-te. Não és visitado por desconhecidos.”
É precisamente aqui que intervém o grãozinho na engrenagem: mesmo um fiel adepto da eutanásia, por ser humano, tem direito à dúvida, e a qualquer momento. E mesmo quem se prepara até ao limite para a partida de alguém, doseando a mágoa, pode sentir-se chocado quando essa cadência de despedida é subitamente alterada. Sem cinismo nem humor negro, como este vigoroso documento – finalista do Prémio LeYa – sintetiza, “o programa pode ser alterado por motivos imprevistos”. Sem que tal dê direito a qualquer devolução do investimento. É a vida...