Diário de Notícias

A incompetên­cia mata

- ANSELMO CRESPO SUBDIRETOR DA TSF

Aterra ainda fumega, os corpos ainda não podem descansar em paz, as feridas ainda estão longe de estar saradas, mas já se ateou um novo incêndio. Aquele que se segue sempre a uma grande tragédia: o do passa-culpas, o das comissões independen­tes que vão apurar tudo até às últimas consequênc­ias, o das investigaç­ões obrigatóri­as que quase sempre desobrigam toda a gente, o das leis que agora vão ser feitas à pressa, o das perguntas e das respostas, tantas vezes contraditó­rias. As chamas que lavram depois da tragédia vão voltar a matar. Oh, se vão.

Abrir uma – ou mais – investigaç­ões ao que se passou em Pedrógão Grande é o mínimo. E, sendo o mínimo, é uma falta de respeito para com quem morreu e para os que perderam tudo. Quantas comissões e grupos de trabalho foram criados nas últimas décadas depois de um grande incêndio? Com mais ou menos mortos, quantas? A que conclusões chegamos sempre? Que falta coordenaçã­o. Que faltam meios. Que não se agiu com a celeridade necessária. Que falta limpar as matas. Que falta uma reforma da floresta digna desse nome.

Quantas pessoas ainda têm de morrer num incêndio? Quantas pessoas ainda têm de perder tudo? Quanto desespero é que estamos dispostos a provocar até fazermos o que tem de ser feito?

Não sei se o incêndio de Pedrógão Grande foi ou não provocado por uma trovoada seca. Não sei se a GNR fechou ou não a estrada. Se a podia ter fechado. Não faço a menor ideia se o Instituto de Meteorolog­ia conseguiu ou não antecipar o clima daquele fim de semana. Não sei o que se passou naquele posto de comando. Não sei nada disto. Gostava de saber, mas não sei se algum dia isso será possível.

O que sei é que houve gente desesperad­a a chamar por bombeiros que nunca chegaram. Sei que um sistema de comunicaçõ­es que custou mais de 400 milhões de euros falhou. E não foi durante menos de um minuto, como um comandante operaciona­l disse ao país. Foi durante horas. Não sei se 400 milhões de euros pelo SIRESP é caro ou barato. Se não funciona, deve ter sido daqueles baratuchos, mas sei mais. Sei que as florestas continuam cheias de matéria combustíve­l por falta de limpeza. Sei que o Estado não limpa a sua própria floresta. Sei que a vigilância é parca e pouco eficaz. Sei que todos os anos, antes da época de incêndios, quem está no governo promete que “este ano é que é”. Todos os anos garantem: “Estamos preparadís­simos.” E sei também que a estratégia de comunicaçã­o durante uma tragédia é, em si mesmo, uma tragédia.

Agora discute-se tudo. Misturam-se alhos com bugalhos, fazem-se propostas idiotas, mas volta-se também a dar voz aos especialis­tas. Aqueles de quem o país só se lembra numa circunstân­cia trágica. Ao contrário dos políticos, estes especialis­tas falam do que sabem e, em matéria de prevenção de incêndios e de florestas, têm sido coerentes ao longo dos anos. Os partidos políticos já os ouviram várias vezes. Já lhes encomendar­am estudos. Já lhes prometeram vezes sem conta, a eles e a nós, que iam resolver o problema. O problema é que, para resolver este problema, é preciso abrir uma ferida profunda no país, curá-la, limpá-la bem e deixá-la cicatrizar. E isso implica coragem. Implica perder votos. Implica consenso político.

O que se faz, por isso, é pôr uns pensos rápidos e rezar para que a próxima tragédia não nos caia no colo. Fazem-se umas leis à pressa, que não resolvem nada de substancia­l e que têm o destino traçado assim que mudar o governo. António Costa não concorda com o que Passos Coelho fez, Passos Coelho não concorda com o que Sócrates fez, Sócrates também não concordou com Santana Lopes nem com Durão Barroso, que por sua vez também não concordou com António Guterres e Guterres também desfez tudo o que Cavaco Silva tinha feito. Se quiserem continuar para trás, façam o favor.

As 64 mortes em Pedrógão Grande não podem pesar apenas no governo de António Costa. O menor dos problemas neste momento é saber se Costa perdeu ou não o estado de graça. Que graça! Como se décadas de incompetên­cia política pudessem ser assacadas a um governo que tem ano e meio. Dito isto, sim: há responsabi­lidades políticas por assumir e António Costa, a ter uma quota-parte de responsabi­lidade, não é apenas pelo governo que agora chefia. É porque não chegou à política em 2015. Como Marcelo Rebelo de Sousa não chegou em 2016.

As mortes em Pedrógão Grande devem pesar na consciênci­a de todos os que não cumprem a lei. Dos que não foram profission­ais e não fizeram bem o seu trabalho. Mas sobretudo daqueles que durante anos legislaram mal ou meteram na gaveta tudo o que era politicame­nte incómodo. As 64 mortes em Pedrógão Grande devem pesar na consciênci­a dos inconscien­tes que nunca perceberam que em política é preciso coragem e ação. Que os grandes estadistas foram quase sempre incómodos, detestados, mas são os que ainda hoje a história recorda como tal – como grandes estadistas.

A incompetên­cia matou 64 pessoas em Pedrógão Grande. Matou muitas mais nas últimas décadas e já ninguém se lembra delas. Lamentavel­mente, vai voltar a matar.

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