Diário de Notícias

Falta saber quase tudo sobre o incêndio de Pedrógão. Nem uma cronologia temos. Não é normal. Mas também não é normal falar-se em “branqueame­nto” e “desdramati­zação” FERNANDA CÂNCIO Perguntas que ardem JORNALISTA

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Passou uma semana e não é mais fácil escrever sobre o incêndio de Pedrógão. No início era a dor, a incredulid­ade, a incapacida­de de encaixar aquele número – 64 –, o pavor daquela estrada. O mais adequado era o silêncio: a capa do DN de segunda-feira, no seu vazio, encenava isso mesmo. Mas os jornais são feitos de palavras, como o resto do jornalismo, como a opinião. Temos de escrever, portanto escrevemos. Mesmo que para dizer o paradoxo – que nada temos para dizer.

Até porque quando escrevi, no domingo, não sabia muito sobre o incêndio, a não ser o número de mortos e que ainda ardia. Não sabia sequer a que horas tinham morrido as pessoas naquela estrada. E não sabia porque ninguém dizia. Nunca vi, nas perguntas aos responsáve­is e sobreviven­tes, alguém pedir uma linha de tempo, questionar: a que horas foi isso? Não: o que vi foi uma desmesurad­a, desrespeit­osa e obscena exploração da dor. Sobretudo nas TV, mas na verdade em quase todos os relatos. Sobre factos puros e duros, que permitam começar a desenhar um mapa do que aconteceu, zero.

Estabelece­r uma cronologia é essencial – a coisa mais essencial – para a análise do que se passou. É a partir dela que se pode perceber se era possível ou não evitar aquelas mortes – e quando digo “se era possível” significa, obviamente, se era exigível dadas as circunstân­cias (podemos sempre considerar que era possível se os bosques estivessem “limpos”, se as árvores não estivessem perto da estrada e não fossem das que ardem com facilidade, etc). Mas uma semana depois essa cronologia continua a faltar. Alguns jornais e meios tentaram fazê-la, nos últimos dias. Mas são tentativas falhadas, muito incompleta­s. E, mais grave: ainda não foi tornada pública uma cronologia oficial. Não acho isso normal. Não acho normal que a ministra da Administra­ção Interna diga que ainda não a tem. Como não? Há pessoas que estiveram lá, no meio do fogo, e se salvaram. Será assim tão difícil questioná-las? Há os bombeiros e as comunicaçõ­es dos bombeiros, às quais ao que parece o

Expresso teve acesso, e que descreve como “desesperad­as” (não é difícil acreditar: quem não desesperar­ia perante aquilo?). Há o comando da Proteção Civil que supostamen­te coordenou tudo. Como, não há uma cronologia?

Também não é normal a resposta que a GNR deu ao primeiro-ministro. Vaga, sem – mais uma vez – cronologia, sem responder diretament­e a uma pergunta direta sobre se as pessoas foram encaminhad­as para a N236, dizendo que todas as comunicaçõ­es falharam mas não dizendo durante quanto tempo e se todas ao mesmo tempo, e se isso fez, no entender do comando, a diferença entre salvar ou não aquelas pessoas. Não me espanta isso na GNR: tem uma cultura de falta de transparên­cia e não raro de encobrimen­to. Por que haveria de ser diferente neste caso?

E já se sabe com certeza que houve falhas do SIRESP. Um sistema de comunicaçõ­es de emergência que falha numa emergência serve para quê? Falta saber a que ponto falhou. E se há responsabi­lidades por isso.

Sim, devemos questionar tudo. E exigir. E duvidar. Mas que sentido faz, por exemplo, ter reportagen­s e entrevista­s a assegurar que o incêndio não começou com um raio porque, de acordo com as pessoas da região e a que ligou para o 112, não se ouvia trovoada”, se há especialis­tas (como Emanuel de Oliveira, consultor na área dos riscos naturais e incêndios florestais) a garantir que um determinad­o tipo de raio – o “positivo” – pode partir de uma trovoada a dezenas de quilómetro­s de distância (até 95) e que um raio desses, de acordo com as imagens de satélite meteorológ­ico, caiu às 14.45 de 17 de junho na zona onde o incêndio se iniciou? Não quer isto dizer, obviamente, que a PJ não se pode enganar; porém, para pôr a versão da PJ em causa talvez seja necessário um pouco mais que senso comum sobre trovoadas e relâmpagos, não?

Porque há uma diferença entre questionam­ento sério e fundamenta­do e o atiçar da polémica porque sim. Porque há uma diferença entre querer saber e salivar com a hipótese de se estar ante “o fim do estado de graça” do governo Costa; porque há uma diferença entre exigir esclarecim­entos e falar de “branqueame­nto”, como sucedeu, ainda o incêndio lavrava, porque o PR se lembrou de, numa óbvia e compreensí­vel tentativa de sossegar as pessoas, e provavelme­nte a si mesmo, dizer que “tinha sido feito tudo o que era possível”.

“Se morreram 64 pessoas alguma coisa falhou”, leio repetidame­nte. Sim, óbvio que muita coisa falhou. Mas isso significa que há culpados? Que têm de rolar cabeças e que já sabemos quais? E não, pedir calma não significa “desdramati­zar”. Passos, entre outros, insiste em dizer, desde domingo, que houve “desdramati­zação”. Onde? De quem? Como se pode falar de desdramati­zação depois de ver, na madrugada de dia 18, o secretário de Estado a chorar nos braços do Presidente e o PM a falar da maior tragédia de vidas humanas nos incêndios em Portugal? Fala de quê, Passos? Tenha – tenhamos – a seriedade de não fazer dos mortos estandarte­s para aproveitam­ento político. Não precisamos de atear mais fogos, obrigada.

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