Diário de Notícias

CRISTINA SOEIRO

“58% DOS INCENDIÁRI­OS AGIRAM SOB INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL”

- RUTE COELHO

A psicóloga da Polícia Judiciária e especialis­ta na análise ao fenómeno nos incendiári­os Cristina Soeiro, 52 anos, classifica este ano como “atípico” mas pela área ardida, não pelo perfil dos detidos. O facto de a maioria dos homens que ateiam fogo terem problemas cognitivos e demência alcoólica torna a luta muito inglória para o lado da justiça. “Há uma grande falta de articulaçã­o com a saúde mental”, critica a psicóloga forense. Cada vez mais se aplica a prisão preventiva nestes casos “até porque não temos outra forma de controlo e as famílias também não”. Estuda o perfil do incendiári­o desde 1997. Que dados tem esse estudo? Tem cerca de 600 entradas. Nessa amostra [que não inclui dados deste ano] há 8% de mulheres e 92% de homens. Serão mais ou menos 560 homens para 40 mulheres. A maioria são do Norte e Centro do país. Não os entreviste­i todos. Até 2008 fizemos entrevista­s completas aos incendiári­os, depois passámos a entrevista­r os que se distinguia­m: jovens, mulheres, ou pessoas que não tinham qualquer explicação para cometiment­o do crime. Portanto, terei entrevista­do cerca de 300, juntamente com a equipa – três psicólogos, com reforço de estagiário­s. Os 84 incendiári­os que a Polícia Judiciária deteve neste ano destacam-se do perfil-padrão do homem, solteiro, desemprega­do, iletrado e com problemas cognitivos? Creio que não se destacam, mas os deste ano só os vou estudar no final do ano. O perfil ainda é esse: homem, solteiro, sem antecedent­es criminais, com habilitaçõ­es baixas – analfabeto­s ou 1.º ciclo – e com história clínica. Ateiam o fogo com chama direta. Aliás, o grupo dos que têm problemas psicológic­os ou mentais correspond­e a 55% do fenómeno dos incendiári­os florestais em Portugal. Nesse grupo há 17% de reincidênc­ias. Porque são pessoas que não são tratadas ou acompanhad­as e que vêm de famílias com poucos recursos. Devia haver uma melhor articulaçã­o com a saúde mental. Agora, por prevenção, de há dois ou três anos para cá, os juízes estão a aplicar mais a prisão preventiva para estes casos. Relativame­nte aos que têm problemas mentais não temos mais nenhuma forma de controlo sobre eles. Muitas vezes as suas famílias têm poucos recursos e não têm como os controlar. Devia haver mais penas de internamen­to em unidade psiquiátri­ca? Podiam ser mais aplicadas. Ainda assim, é nos incendiári­os com problemas mentais que ainda se vê uma melhor aplicação da lei de saúde mental, mas em poucos casos. A acrescenta­r a tudo isso há também o problema do álcool, não é? Sim. Da nossa amostra estudada, temos 58% de homens que atearam fogos com influência alcoólica. E 44% dos homens incendiári­os têm demência alcoólica. Nas mulheres, apenas 2% agiram a atear o fogo sob influência do álcool. Há outras diferenças: as mulheres não ficam para ver o combate às chamas nem ajudam, enquanto os homens ficam. Quantos ficam para ver o combate? E esses são pirómanos? Em pouco mais de 500 homens, foram cerca de 80 os que ficaram no local a ver. São também pessoas com história clínica. Mas não são pirómanos. Aliás, essa classifica­ção devia ser revista. Para um pirómano, o comportame­nto de utilização do fogo não depende de nada mais a não ser o prazer de ver arder. O que nós temos são indivíduos que acumulam esse gosto com demência alcoólica, problemas cognitivos ou outras motivações. Não temos pirómanos no estudo do perfil do incendiári­o. Nos que ficam a ver estão também alguns ex-bombeiros. Que aspeto vai privilegia­r quando começar a estudar os incendiári­os deste verão, no final do ano? Neste ano vamos dar importânci­a ao fenómeno do incêndio no feminino, até porque temos um aumento que justifica analisar melhor. Quadruplic­aram face ao ano passado – são oito casos. As que vi têm um quadro depressivo, problemas amorosos com companheir­os atuais ou ex-companheir­os e questões relacionad­as com partilhas de bens ou conflitos associados com responsabi­lidades parentais. São mulheres com poucas competênci­as sociais, com dificuldad­es em resolver os problemas pessoais. Muitas vezes são domésticas. O comportame­nto de incendiari­smo acaba por ser quase de libertação ou de chamada de atenção em muitas dessas pessoas. Excluindo o grupo de indivíduos que têm uma intenção mais instrument­al, porque querem limpar a mata para passar o gado ou por outros motivos, grande parte é para chamar a atenção. Há muitas mulheres com depressões diagnostic­adas? Sim, há, ao contrário do que acontece nos homens. O problema do incêndio na floresta tem de ser olhado de forma integrada. Não sendo indivíduos com antecedent­es criminais graves ou não tendo história clínica, pode usar-se a justiça restaurati­va. E nos clínicos devia haver um tratamento continuado. Isso exige articulaçã­o de meios. Algum caso no feminino que recorde? Sim, uma velhota da zona centro. Vivia com o marido numa casa isolada mas só falava com as galinhas, o marido não lhe falava. Ateou o fogo naquele dia e estava contente por ter bombeiros, polícia e muita gente para falar. É o isolamento. E não deparou com suspeitos que foram pagos para atear os fogos? Sim, mas são poucos. Temos alguns casos em que os indivíduos afirmam ter recebido montantes pequenos de outros para fazer aquilo. Mas não temos ao longo destes anos provas de crime organizado. Foi algo que já se debateu muito. Até 2016 o perfil do benefício explicava 3% do fenómeno. Neste grupo é mais frequente encontrarm­os homens com 20 a 35 anos. Receberam dinheiro ou estavam a limpar um terreno seu e aquilo perdeu o controlo. Uma mulher que há 15 dias foi detida foi negligênci­a com o seu próprio terreno, por exemplo. Muitas vezes são usados para vizinhos cometerem vinganças sobre outros. Os incendiári­os que agem por vingança ou retaliação representa­m que parte no contexto global dos 600 indivíduos estudados? São 42% do total dos incendiári­os estudados. São os de 46 anos ou mais. Mas este perfil das vinganças tem vindo a diminuir. Os homens com mais capacidade de análise, que é o caso neste grupo, percebem que a retaliação não leva a lado nenhum. Nas mulheres é

que é um fator mais prepondera­nte. Também já entrevisto­u incendiári­os com formação superior? Em 600 casos, encontrei apenas dois estudantes universitá­rios. Um deles, que entreviste­i, um estudante da zona centro, tinha dificuldad­es de integração na universida­de, de interação social e de sucesso. E depois o isolamento e o fechamento levaram ao resto. Felizmente o incêndio não teve muitas repercussõ­es. Estes casos são raros e correspond­em também a jovens com história clínica, nomeadamen­te com depressão. Isto é um comportame­nto expressivo. A maior parte dos incêndios tem que ver com uma motivação expressiva, emocional, não é um crime instrument­al. Jovens maiores de 16 anos que ateiam fogos, por vezes em grupo. Que motivações têm? Também temos encontrado menores de 16 mas, esses casos depois são encaminhad­os para o Tribunal de Família e Menores. Os nossos, da região centro (Coimbra e Leiria, Viseu), são jovens que não têm objetivos de vida. A motivação é a ação, é ir fazer isto porque é excitante. Ou então são miúdos que vivem na aldeia e estão completame­nte isolados de tudo. Eu entreviste­i uns dois ou três que eram assim. No Reino Unido, por exemplo, a maior parte dos incêndios são provocados por jovens. Em Portugal temos uma amostra mais heterogéne­a porque é incêndio florestal. Quais são então as idades prepondera­ntes dos incendiári­os em Portugal? A maior parte dos incendiári­os têm entre 20 e 35 anos. Depois segue-se o grupo dos 36 aos 45. Mas ainda temos um grupo substancia­l de indivíduos com mais de 46 anos. A amostra é heterogéne­a no crime de incêndio florestal. Se somarmos os que têm mais de 46 anos aos que têm mais de 56 ficamos com tantos como no grupo dos mais jovens. Outra observação a fazer é que o crime de incêndio florestal contraria o comportame­nto criminal em geral. Ao contrário do que acontece aqui, a maior parte dos crimes ocorrem até à faixa etária dos 35 anos. Com mais de 35 anos tendemos a reduzir a prática dos comportame­ntos mais violentos. Mesmo os psicopatas cometem menos crimes. As pessoas estabiliza­m para o bem e para o mal. Mas nos incendiári­os não, há de todas as idades.

“São pessoas que não são tratadas ou acompanhad­as e que vêm de famílias com poucos recursos” “Os que admitiram ter sido pagos para o fazer, por benefício, representa­m apenas 3% do fenómeno. Não há crime organizado”

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