Onde menos de se espera, Lisboa, Cidade do Sul projeta-se
A Videoteca saiu de casa para mostrar, pela cidade, o cinema que nos liga à América Latina (e ao Sul). Alcântara, Carnide e Parque das Nações são os próximos destinos
Tudo a postos no centro do bairro do Vale Fundão, em Marvila, para ver os documentários de Santiago Alvarez e Sérgio Tréfaut
LINA SANTOS “Se vêm mostrar, a gente deve vir.” Isaura Sousa, sentada numa das cadeiras de plástico deste cinema ao ar livre, foi das primeiras a sair de casa (“ali mesmo em cima”) e a tomar lugar para a projeção ao lado do marido José. É sábado, está uma dessas noites para estar na rua, nem frias nem quentes, e os cobertores cinzentos, emprestados pelo quartel de Mafra, vão ficar arrumados em pilha, sem que ninguém lhes ligue. Passa música sul-americana e o ecrã anuncia os filmes que vão poder ver-se na sala improvisado no bairro do Vale Fundão, em Marvila: Milagre na Terra Morena, documentário do realizador cubano Santiago Alvarez, de 1975, a partir de entrevistas e imagens captadas após o 25 de Abril, e Outro País, esses 70 minutos em que o realizador luso-francês Sérgio Tréfaut resgata a palavra de documentaristas e fotógrafos que conheceram Portugal nos anos da revolução e do PREC (Processo Revolucionário em Curso).
É o próprio quem faz as apresentações, pouco depois das 21.30, já com as cadeiras cheias. Outro País (2000) “nasceu de uma tentativa de fazer uma exposição nos 25 anos do 25 de Abril”. Percebeu que não estavam disponíveis em Portugal os arquivos dos muitos fotógrafos e realizadores que passaram por Portugal entre 1974 e 1975, como Sebastião Salgado ou o norte-americano Robert Kramer, autor do filme Cenas da Luta de Classes em Portugal (1977). O que viram, como viram é tema do debate que Tréfaut manteve três horas antes com os investigadores Olivier Hadouchi e Maria do Carmo Piçarra na sala de festas doVale Fundão.
A projeção está prestes a arrancar. “Alguém fala castelhano?”, pergunta-se, para saber em que língua devem aparecer as legendas. Uma mão ergue-se. “Quero conhecer mais sobre este período”, conta, voz sussurrada, o espanhol entre a audiência, há dois anos a viver e a trabalhar em Portugal. Descobriu o evento “nas redes sociais”. Outros, como Elsa Fernandes, que aqui vive há quase 50 anos, recebeu “o convite” por carta. Veio com a família, neta e três bisnetos, e sentaram-se na primeira fila. Os miúdos entretêm-se com filmes no telemóvel enquanto esperam e talvez preferissem outros títulos para ver no bairro, admitem os pais. Mas esse não é “o objetivo desta iniciativa, diz Sérgio Marques, que acompanha Inês Sapeta Dias na programação.
Lisboa, Cidade do Sul é o chapéu que abriga esta mostra de filmes nascida para a Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura. São parte do ciclo Topografias Imaginárias, que o Arquivo Municipal de Lisboa –Videoteca organiza pela quarta vez e que leva para a rua pela primeira.
Os próximos destinos são Alcântara, Carnide e Parque das Nações (ver programa). Em dia de projeções, um autocarro, gratuito, sai às 21.00 da Praça da Figueira, para estas salas de cinema escolhidas para condizer com os filmes, pontes cinematográficas entre Portugal e a América do Sul. Como o bairro do Vale Fundão, de casas construídas por quem aqui vive há quatro, cinco décadas.“É umbairrodegenteque veio da Beira Alta e de Trás-os-Montes”, conta Sérgio Marques. “No momento em que se estava a ter ideias sobre a construção do país”, diz Inês Sapeta Dias, a propósito do filme de Santiago Alvarez, que passa no ecrã, “viemos para um bairro construído pelos habitantes, migrantes do norte para o sul”.