Ministério da Saúde ameaça enfermeiros com processos
Na sequência da paralisação dos enfermeiros especialistas, médicos estão a entregar minutas em casos de falhas nas equipas
CYNTHIA VALENTE e PEDRO VILELA MARQUES O Ministério da Saúde considera ilegal a nova forma de protesto encontrado pelos enfermeiros da área de obstetrícia, que passa pela entrega à Ordem do título de especialidade, e ameaça estes profissionais com a marcação de faltas injustificadas e processos disciplinares. Num comunicado enviado às redações ao início da noite de ontem, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) pede aos hospitais que façam a “avaliação do impacto desta forma, que se considera ilegal, de conflito coletivo” e adiantou que “tem já em preparação um novo pedido de parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República”.
Segundo a ACSS, apoiada em pareceres jurídicos, “não é legalmente possível a suspensão da inscrição como enfermeiro especialista na Ordem dos Enfermeiros sem que haja suspensão da inscrição como enfermeiro”. Daí resulta, ainda segundo o órgão tutelado pelo Ministério da Saúde, que “os trabalhadores com a categoria de enfermeiro e título de especialista que se recusem, individual ou concertadamente, a praticar atos de enfermagem integrados na referida especialidade, ainda que com fundamento no facto de terem, voluntária e concertadamente, suspendido a respetiva inscrição, designadamente como especialistas, na Ordem dos Enfermeiros incorrem numa violação dos deveres contratuais e legais a que estão obrigados, especialmente os deveres de zelo, obediência e lealdade”.
Conclusão: “A mesma atuação configura incumprimento do contrato, podendo dar origem a faltas injustificadas em virtude de a entidade empregadora poder recusar a prestação do trabalho com fundamento na exceção do não cumprimento do contrato, com as inerentes consequências em termos de ação disciplinar”. A ACSS aproveita ainda para criticar a Ordem dos Enfermeiros, que, “deste modo, se associa a uma iniciativa correspondente a um conflito laboral coletivo, que põe em causa os direitos dos cidadãos e pode ter consequências graves do ponto de vista da prestação de cuidados de saúde”. Centenas de enfermeiros já entregaram as carteiras profissionais para suspensão do averbamento do título profissional, ficando assim proibidos de exercer funções de especialistas e passando a enfermeiros de cuidados gerais. Uma situação que levou ontem a Ordem dos Médicos (OM) a emitir um comuni-
Centenas de enfermeiros já entregaram os seus títulos de especialidade à Ordem cado em que pediu que os médicos entreguem uma minuta caso deixem de ter enfermeiros especialistas nas suas equipas. O protesto dos enfermeiros especialistas em saúde materna – que querem ver reconhecida a especialidade – tem provocado inúmeros constrangimentos nos blocos de partos em todo o país.
Ao DN, fonte da Ordem dos Enfermeiros explicou que esta tomada de posição surge no seguimento das “falhas nas promessas feitas pelo ministro da Saúde” e tem como consequência imediata a proibição legal, após entrega de título, de exercer funções nos blocos de parto, fazer acompanhamento de grávidas no pós-parto, ou ainda fazer preparação de partos, entre muitas outras tarefas. A preocupação manifestada pelos médicos à Ordem levou aquele organismo a emitir o comunicado, que tem como objetivo evitar que “os médicos assumam a responsabilidade por falhas nos serviços”. “A Ordem dos Médicos está profundamente preocupada com a qualidade assistencial às grávidas e com a qualidade das condições de trabalho das equipas multidisciplinares de assistência às grávidas e dos blocos de partos dos hospitais”, pode ler-se no comunicado da OM. Os signatários da minuta declinarão, assim, “toda e qualquer responsabilidade derivada da sua prestação de trabalho em circunstâncias em que não estejam reunidas as condições de segurança e qualidade à prática de atos médicos”. Ao DN, o bastonário da OM, Miguel Guimarães, referiu que, “em último caso, deve ser reforçada a equipa com mais médicos especialistas”, substituindo assim as “falhas” dos enfermeiros da especialidade.
Joaquim Gonçalves, ginecologista, obstetra e especialista em infertilidade do Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), sublinhou ao DN o “papel essencial e de extrema importância” dos enfermeiros especialistas. “São eles que fazem o acompanhamento à grávida desde que esta chega ao hospital até que entra na sala de partos e que monitorizam o seu bem-estar. Esta é uma área de tolerância zero. Uma mãe e um bebé que entram saudáveis têm de sair saudáveis”, afirmou. A Ordem dos Enfermeiros mostrou-se muito satisfeita com a posição ontem tomada pela OM, entendendo o comunicado como “um assumir da importância dos enfermeiros especialistas”. “A posição da OM é uma forma de proteger o médicos, mas também mostra que eles vão ao encontro do problema e que nos reconhecem a importância”, explicou fonte da Ordem dos Enfermeiros.
O protesto dos enfermeiros especialistas em saúde materna prende-se com a falta de reconhecimento da sua especialidade, bem como a inexistência de atualização salarial. Segundo a Ordem dos Enfermeiros, que apoia os profissionais nesta luta, existem cerca de três mil enfermeiros que, apesar de serem especialistas, recebem como se prestassem serviços de enfermagem comum e assumem uma responsabilidade acrescida, embora sem o reconhecimento do título. Aqueles profissionais de saúde deram início ao Movimento EESMO (Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia), em julho passado, provocando constrangimentos em maternidades de norte a sul do país. Com esta nova forma de protesto (entrega dos títulos de especialistas), os enfermeiros esperam conseguir o reconhecimento da especialidade, que pagam do próprio bolso e que ascende a quase dez mil euros.