Diário de Notícias

A morte fortuita

- POR ANTÓNIO BARRETO

Os incêndios florestais de 2017, especialme­nte os de Pedrógão Grande, entraram para a história. Os mais de 65 mortos deste desgraçado Verão ficam nos anais do último século. Há por esse mundo fora, em área ardida por exemplo, outros fogos mais graves. Mas pelo número de vítimas já figuram entre os mais mortais de todos.

Não só por esse motivo mas também pela descoorden­ação e pela imprevisão, caso contrário não haveria este número absurdo de mortos. Pela incompetên­cia. Pela falha dos sistemas de comunicaçã­o. Pela incerteza criada com as mudanças de dirigentes de última hora. Pela incerteza da autoridade e da distribuiç­ão de responsabi­lidades. Pela confusão na aquisição de telecomuni­cações, de carros, de helicópter­os e de aviões. Pela insuficiên­cia de serviços profission­ais. Pela tentativa de dissolução de responsabi­lidades. Pela desordem na organizaçã­o dos apoios à reconstruç­ão. Pela trapalhada na gestão dos donativos. Tudo falhou: o antes, o durante e o depois. E só a recordação das centenas de bombeiros a trabalhar em sofrimento impede de ser ainda mais severo.

Estes temas são sempre políticos. Porque é a política que permite organizar a segurança, socorrer, criticar e corrigir. Infelizmen­te, os responsáve­is, em defesa própria, tentaram afastar a política. E acusaram a oposição de “fazer política”. Esta quis defender-se, mas não escondeu o ar rancoroso. O PSD e o CDS não perderam o tom ressabiado, à espera de ver sangue para gritar ao lobo. Não houve debate sério. O Bloco e o PCP, que quase sempre abordam assuntos difíceis, desta vez, com receio de ferir o seu governo, calaram-se.

O clima de desconfian­ça cresceu, alimentado pela gestão infeliz dos dinheiros da solidaried­ade. Não se sabe onde estão. Recomeçar a vida? Reiniciar actividade­s comerciais e industriai­s? Reconstrui­r as casas? Todos os dias chegam aos jornais e às televisões queixas de cidadãos a perguntar pelos apoios e a garantir que nada chega. Serão só boatos? Sucedem-se os comunicado­s de várias entidades, o que só aumenta o descrédito. Nem sequer é provável que haja roubo, mas tão-só incompetên­cia, tentativa de protagonis­mo e luta entre medíocres autoridade­s.

Como é evidente, todo este assunto é profundame­nte político. Da prevenção aos sistemas de protecção, da organizaçã­o da sociedade e das autarquias aos investimen­tos, das compensaçõ­es aos subsídios e à reconstruç­ão: há políticas por todo o lado. Política no sentido de escolhas e de opções fundamenta­is. Infelizmen­te, não tivemos essa política. O governo calou-se e criou um ónus moral sobre todos, acusando de oportunist­a quem pretendeu debater. Culpado da desorganiz­ação, o governo não quis analisar e tomar responsabi­lidades. Ainda tentou garantir que responsáve­is eram os governos anteriores, mas também aí recuou, quando percebeu que o governo de Sócrates e Costa estava incluído. Na verdade, o maior esforço do governo consistiu na procura do esquecimen­to. E na tentativa de mostrar que as mortes eram inevitávei­s. Ou antes, fortuitas.

A estratégia foi a de afirmar que qualquer discussão do assunto era “fazer política” e “aproveitar”. Com os sentimento­s de culpa do PSD e do CDS, com os silêncios dos autarcas que não se querem compromete­r e com a abstenção do PCP e do Bloco, não haverá responsabi­lidades nem correcção dos sistemas de ordenament­o e de prevenção. A não ser que qualquer coisa mude. A não ser que os 65 mortos tenham sido a conta necessária para comover o país.

Porque estes problemas são sempre políticos e é necessário, acima de tudo, ajudar e corrigir, esperava-se que o Parlamento e outras instituiçõ­es reforçasse­m o seu empenho na tentativa de resolver. Mas não. Praticamen­te toda a gente se limitou a defender os seus e acusar os outros. Como adeptos ou fiéis, sem liberdade nem pensamento. Nem sentido do dever.

Tudo falhou: o antes, o durante e o depois. E só a recordação das centenas de bombeiros a trabalhar em sofrimento impede de ser ainda mais severo

A estratégia foi a de afirmar que qualquer discussão do assunto era “fazer política”

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

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