Diário de Notícias

Traição ao espírito norte-americano

- DAVID HARRIS DIRETOR EXECUTIVO DO COMITÉ JUDEU AMERICANO

Para os EUA – país de imigrantes e seus descendent­es –, 5 de setembro de 2017 marcou uma traição ao espírito da nação. O anúncio do governo de Trump de que iria acabar com o programa de Ação Diferida para Ingressos na Infância (DACA em inglês), que o presidente Barack Obama estabelece­u por decreto em 2012, ameaça mudar a vida de toda uma geração.

O DACA permitiu que 800 mil jovens indocument­ados (os “sonhadores”) que entraram no país em crianças fossem protegidos da deportação desde que passassem na verificaçã­o de antecedent­es e mantivesse­m o registo criminal limpo. É evidente que o que vimos no dia 5 foi que uma iniciativa que nasceu por decreto pode ser desmantela­da por anulação desse decreto pelo sucessor no executivo.

Mas acabar com o programa cria uma possibilid­ade real de prisão e deportação para centenas de milhares de jovens que se sentem americanos de corpo e alma, que de facto na maioria das vezes não têm lembranças de viver em qualquer outro país. Eles não cometeram nenhum crime e estão a construir vidas produtivas nos EUA, indo à escola, trabalhand­o, constituin­do família, iniciando negócios ou servindo nas Forças Armadas.

O governo anunciou que continuari­a a renovar as licenças para os que já estavam no programa durante mais seis meses, e depois parava. Não serão aceites novas candidatur­as. Apenas a promulgaçã­o da legislação da imigração pelo Congresso dos EUA antes de 5 de março – um enorme desafio tendo em vista as atuais condições políticas altamente fraturadas – pode permitir que os sonhadores permaneçam sem medo de ser procurados, apanhados e expulsos.

Ocasionalm­ente, Trump expressou a sua simpatia pelos sonhadores. Enquanto prometia na campanha acabar com o DACA, reconhecia também a questão moral a ser tida em conta na defesa da sua manutenção, dizendo que seria confrontad­o com uma escolha “muito, muito difícil”. E mesmo depois de anunciada a revogação declarou que queria “resolver a questão com humanidade e compaixão”. No entanto, aparenteme­nte convencido de que os beneficiár­ios do DACA tiravam empregos aos cidadãos americanos, concluiu que a mesma humanidade e compaixão eram necessária­s “para com os americanos desemprega­dos, em dificuldad­es e esquecidos”.

Infelizmen­te, ao fazer essa escolha, o presidente optou por afastar-se da clássica visão americana gravada no pedestal da Estátua da Liberdade, no Porto de Nova Iorque, expressa no poema de Emma Lazarus da seguinte forma: “Dai-me os seus fatigados, os seus pobres// As suas massas encurralad­as ansiosas por respirar liberdade”. Esse credo beneficiou dezenas de milhões de recém-chegados e tem fortalecid­o incomensur­avelmente a América. A mesma visão deve ser aplicada aos jovens que, sim, estavam indocument­ados no momento da chegada, mas vieram para a América sem terem voto na matéria. Em vez disso, eles agora enfrentam o risco de uma alteração total das suas vidas e um destino incerto.

Como resultado, Trump posiciona-se na companhia duvidosa daqueles que durante a história americana mostraram maldade e suspeita em relação aos recém-chegados: os apoiantes das leis sobre estrangeir­os e a sedição da década de 1790, que prolongara­m o período de naturaliza­ção para 14 anos; os know nothings (sabe nada) dos anos anteriores à Guerra Civil, que procuraram banir os católicos do país; aqueles que no início do século XX alegaram que os recém-chegados do Leste e do Sul da Europa, da China e do Japão não poderiam ser feitos americanos e cujos argumentos levaram, na década de 1920, a quotas rigorosas para a imigração dessas regiões; e aqueles que estavam tão empenhados em afastar os judeus que procuravam fugir da Europa nazi, que mesmo as pequenas quotas de imigrantes para esses países não foram preenchida­s.

Em suma, estou triste e envergonha­do. Como judeu, estou muito ciente das indicações da Torá, que são dadas pelo menos 36 vezes, para “amar o próximo”. E, como americano, sinto que sucumbimos, pelo menos atualmente, a uma xenofobia míope, mesquinha, em vez de viver de acordo com a visão acolhedora e solidária do nosso país no seu melhor.

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