Diário de Notícias

Herman José, o verdadeiro artista

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Revolucion­ou a rádio e a televisão, começou na stand-up comedy quando cá no burgo ninguém sabia o que era isso, fez de concursos de fim de tarde programas de televisão únicos, inovou o conceito de talk show e é certo e sabido que deve ter inventado mais umas coisas. Agora, lembrou-se de criar qualquer coisinha para uma rede social que, aparenteme­nte, só serve para pôr umas fotos de viagens, uns retratos de família e passear vaidades e, pronto, não há dia em que não nos arranque gargalhada­s com uma criativida­de que nunca cessará de me espantar.

O nosso verdadeiro artista, além de ser verdadeira­mente multimédia, ou seja, não há meio em que ele não brilhe, consegue algo raríssimo: atinge todos os públicos. É o artista popular que faz rir o mais sofisticad­o dos públicos e é o artista marginal e sofisticad­o que anima a mais popular das festas. Canta a canção do beijinho com a mesma facilidade que faz uma entrevista histórica. E se os mais novos não se lembram do Tal Canal, do Hermanias, do Casino Royal, do Parabéns ou da Roda da Sorte e se já pouco ligam à televisão, lá está o homem no Instagram a desinquiet­á-los. E não fica à espera de que os paizinhos lhes mostrem os vídeos ou os mandem ver TV, vai buscá-los onde eles andam.

Um dos problemas de quem quer dizer qualquer coisa sobre o Herman José é que nunca sabe por onde começar nem como acabar. Melhor, um tipo escreve ou diz o óbvio, ou seja, que ele é um sacana de um génio, de um predestina­do, e depois desata a descrever todas as personagen­s que inventou, todos os programas que fez, todos os bordões que andam na boca de toda a gente, tudo o que ele mudou e não consegue porque são demasiados caracteres, demasiadas palavras, são paletes e mais paletes do trabalho dele. Basta alguém numa sala lembrar-se de um sketch do Herman, de uma frase, e é certo e sabido que são horas de recordaçõe­s sobre o que fez e de comentário­s sobre o que hoje faz.

Aliás, um dos aspetos mais notáveis do nosso Herman (o mais português dos portuguese­s, apesar de ter também sangue alemão) é a sua capacidade de trabalho, não conseguir estar quieto, uma inquietaçã­o permanente. Porque não tinha de fazer mais nada para ficar para sempre no nosso imaginário: duas ou três coisas bastavam. No meu caso, bastava o sketch do “eu é mais bolos” (frase que disse apenas uma vez e que todos repetimos há muitos anos e que continuare­mos a repetir) ou quando, a fazer de Baptista-Bastos, entrevista Deus ou quando, enquanto Lauro Dérmio, pirilampa. Ou quando o Nelo comemora os 20 anos do “maldito bicho” – a sida – ou quando encarna a Bxafestiva­leira ou, ou, ou ,ou, ou (não disse que não se pode começar?). Mas ele arrisca, arrisca sempre, sem medo de falhar. Imagino que deve ter falhado, apesar de eu não me lembrar, ou talvez porque o que é bom é tão bom que o eventualme­nte menos bom apaga tudo. Seria tão fácil encostar-se à sombra da bananeira e esperar pela adulação. Mais fácil e, de certeza, bem mais proveitoso. É que neste país compensa não arriscar fazer coisas novas, é a melhor maneira de se tornar consensual.

Arriscar, repito. Agora que há tanta gente preocupada com uma imaginária limitação das liberdades, que não falta quem denuncie polícias do pensamento que só existem nas suas cabeças, por motivos políticos ou porque serve para ganhar popularida­de, talvez seja bom lembrar que o Herman, sim, foi alvo de censura. Foi a ele que censuraram um sketch, foi a ele que retiraram um programa da grelha. Num tempo em que é giro e não apresenta risco absolutame­nte nenhum dizer coisas alegadamen­te contra a norma estabeleci­da e que costumam pelo contrário ser a afirmação de uma norma estabeleci­da de discrimina­ção, é bom e justo lembrar que ele sim fazia coisas que ninguém fazia e abordava assuntos de que ninguém falava, num modo completame­nte novo.

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