Um poema no meio do caminho de Drummond
Biografia de um Poema, com encenação de António Pires, discute a arte contemporânea, mas é um divertimento e uma provocação
“No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho.” Com estes versos começava o poema que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) publicou na Revista de Antropofagia, em 1928, e dois anos depois incluiu no seu livro de estreia, Alguma Poesia. A crítica caiu em cima dele.
Foi considerado uma “bobagem”. “O Sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio”, escreveu Gondin da Fonseca. Os professores, quando tinham que dar um exemplo de má poesia, usavam o texto de Drummond. Mas, se uns o consideravam demasiado simples e repetitivo, outros viam nele um novo caminho – o do Modernismo. Um poema que falava para as pessoas, “o poema que todos nós queríamos ter feito”. O melhor exemplo dos tempos novos que se viviam em todas as artes.
Divertido com este bate-boca, Drummond foi guardando tudo o que sobre aquele poema se disse e publicou. Críticas, comentários, piadas. De gente importante e de gente menos importante. E, depois, reuniu esses textos num outro livro, Biografia de um Poema, editado em 1967.
É esse livro que está na origem do espetáculo que António Pires encena agora. A ideia começou a nascer nas conversas com Cassiano Carneiro, ator brasileiro residente em Portugal, e colaborador habitual do Teatro do Bairro. Alexandre Oliveira, produtor da Ar de Filmes, trouxe a Biografia de um Poema. Cassiano juntou a esta conversa um outro amigo do Brasil, o ator Chico Diaz, que se dispôs a “empurrar para lá” mais uns projetos de telenovelas e filmes para passar uma temporada a fazer teatro em Portugal. E a eles juntar-se-ia mais tarde a atriz Rita Loureiro.
“Nunca trabalhei este poema em palco nem sei se alguma vez foi feito, achei a ideia genial”, conta Chico Diaz. Para o ator, No meio do caminho “é um poema referencial, estandarte do modernismo e que foi o mais apedrejado, digamos assim. Com pouquíssimas palavras, sem rima, sem compromisso com a forma, mas com um estado de alma claro e evidente. Um poder de síntese enorme. Isso incomodou muita gente, deixou as pessoas desnorteadas.”
António Pires quis sublinhar isso mesmo neste espetáculo: “As pessoas têm muita resistência às coisas novas, isso acontece ainda hoje. Muita gente disse mal do poema, mas apesar disso ele transformou-se num sucesso, toda a gente sabia o poema que é muito simples, e brincava com ele. O espetáculo tem essas coisas mais brincadas, é muito lúdico e provocatório. E tem outras mais de reflexão – sobre o modernismo e sobre o desconhecido, as novas formas de estar.” Com as palavras de Drummond e com outros textos, como o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, discute-se o que é um bom poema e o que é a beleza, o que é a arte e para que serve, qual o papel do público numa obra de arte. Seja um poema ou um espetáculo.