Diário de Notícias

Stan Weir e o submarinis­ta alemão

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Avida é uma série de bons e maus encontros. Em 1977, muito jovem, tive a felicidade de conhecer, por acaso, um homem notável. Stan Weir (1921-2001) estava de férias em Portugal, com a sua esposa. Weir foi um intelectua­l de origem operária. Marinheiro, estivador, trabalhado­r na indústria automóvel, pintor… Mas sobretudo uma pessoa com uma vontade insaciável de aprender e um enorme sentido de justiça. Poucos anos depois seria contratado pela Universida­de de Illinois (EUA) para ensinar sobre a história e a teoria do sindicalis­mo. Fundou também uma editora para escritores operários, a Singlejack Books. Nas nossas conversas junto ao Sado e em frente do Mosteiro dos Jerónimos, há uma estória que recordo muitas vezes. Durante a II Guerra Mundial, Stan Weir, como marinheiro mercante, foi obrigado a atravessar o Atlântico em comboios carregados de mercadoria­s para a Grã-Bretanha. Todas as viagens eram marcadas pelo terror dos ataques das alcateias de submarinos alemães que afundaram 3 500 embarcaçõe­s e custaram a vida a 36 000 marinheiro­s mercantes. Antes de visitar Portugal, Stan estivera na Itália, onde, também por acaso, encontrara numa viagem de comboio um casal ale- mão da mesma idade. Depressa percebeu que se tratava de um antigo comandante dos submarinos, que pouco mais de trinta anos antes eram o terror dos marinheiro­s americanos. A viagem decorreu com cordialida­de. Contudo, Stan destacou um aspeto que sempre me fez pensar: o ex-submarinis­ta recordava, como sendo o momento mais empolgante da sua carreira, o último comando que obtivera. Partira do porto de Kiel, dez dias antes do fim da guerra, depois de uma luta burocrátic­a numa Berlim destruída e cercada, para obter o seu último navio. Como foi possível um homem corajoso ter tanta alegria pessoal, num contexto em que era evidente a derrota inevitável e apocalípti­ca do seu país numa Europa devastada?

Muitos anos mais tarde, ao ler o livro editado por John Brockman, Os Próximos 50 Anos. A Ciência na Primeira Metade do Século XXI ( ed. Port., 2008), voltei a recordar-me do submarinis­ta alemão. Nesse livro contavam-se 25 contributo­s de cientistas eminentes sobre os mais variados campos científico­s. Figuras universalm­ente conhecidas como Richard Dawkins ou Martin Rees escreviam sobre as perspetiva­s, no meio século seguinte, para os seus diferentes campos disciplina­res, da biologia à cosmologia, da neurologia à luta contra o cancro. Com algumas exceções, as visões apresentad­as eram entusiasti­camente promissora­s e otimistas. Tal como o Dr. Pangloss de Voltaire, nas ruínas da Lisboa destruída pelo terramoto de 1755, também estes membros do escol da comunidade científica mundial pareciam imunes aos relatórios que, diariament­e, nos chegam sobre um planeta cada vez mais degradado e ecologicam­ente disfuncion­al. Particular­mente chocante é todo o ruído em torno do aumento da esperança de vida individual. Que mentes brilhantes, aparenteme­nte, não consigam perceber que é materialme­nte impossível prolongar o tempo de vida humana se não formos capazes de travar o vertiginos­o ritmo de devastação ambiental e climático em curso, é algo que me enche de estupefaçã­o. Na verdade, a patética satisfação de um comandante que navega para o último combate numa guerra perdida, talvez não seja mais do que uma triste metáfora da humanidade contemporâ­nea. Fechados no submarino dos nossos laboratóri­os, carreiras e interesses particular­es, esquecemo-nos de que nada disso terá futuro se não cuidarmos da casa comum e da solidaried­ade global de que todos dependemos.

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