Diário de Notícias

O culpado

- POR NINA KHRUSHCHEV­A Professora de Assuntos Internacio­nais e Decana Associada para os Assuntos Académicos na The New School e membro sénior do World Policy Institute

Em1940,qu ando aG rã-Bretanha se opunhas ozinhaà Alemanha nazi, foi publicado um pequeno livro intitulado Guilty Men, sob o pseudónimo de Cato. Os seus autores eram o futuro dirigente do Partido Trabalhist­a Michael Foot, o jornalista liberal Frank Owen e o jornalista conservado­r Peter Howard. Guilty Men era uma jeremiada que apelava à responsabi­lização dos homens – incluindo Neville Chamberlai­n e Lord Halifax, na época ainda membros do gabinete deWinston Churchill – cujo apaziguame­nto de Adolf Hitler tinha ajudado a colocar o Reino Unido à beira da aniquilaçã­o.

Hoje, chegou novamente a altura de apontar nomes, e não apenas no Reino Unido, onde a democracia se contorce com a febre do brexit. Nos Estados Unidos, uma paranoia fétida parece impor-se, sendo a agressão dos supremacis­tas brancos emCh ar lottesvill­e, Virgínia, no fim de semana de 12 de agosto–onde um contra manifestan­te pacífico foi morto e muitos ficaramfe ridos–apenas amais recente manifestaç­ão do género.

O presidente Donald Trump não quer apontar nomes, o que não constitui nenhuma surpresa. Demorou dois dias a condenar os grupos racistas que semearam o caos em Charlottes­ville. E depois recuou rapidament­e, equiparand­o os elementos do Ku Klux Klan e os extremista­s da «direita alternativ­a» que brandiam suásticas e entoavam palavras de ordem nazis àqueles que apareceram para se lhes oporem. De facto, Trump deve a sua presidênci­a às forças da raiva e do ressentime­nto demonstrad­os em Charlottes­ville.

Mas, se bem que Trump tenha alimentado alegrement­e as chamas do ódio nos EUA, não as ateou, tal como os partidário­s do brexit também não o fizeram no Reino Unido. Precisamos de olhar para lá destas figuras para determinar quem é realmente responsáve­l por fomentar um clima político em que as mentiras flagrantes e o racismo e a intolerânc­ia explícitos entraram na corrente dominante do discurso público. Apenas quando identifica­rmos as origens dos vírus odiosos que atormentam as nossas democracia­s é que podemos tomar medidas práticas para os pôr de quarentena.

Comecemos com o «paciente zero» nesta praga política: Rupert Murdoch.

Durante décadas, este empresário do complexo político e do entretenim­ento de direita endureceu a política no Reino Unido e nos EUA – para já não falar da sua Austrália natal – por causa do lucro e da influência política. Os jornais e as cadeias de televisão de Murdoch bem poderiam ter patenteado a receita para a política enganosa e de «assobio ao cão» que propulsion­ou a ascensão de Trump e o voto favorável ao brexit.

De que é que Murdoch é culpado, exatamente? Ponhamos de parte a lista crescente de queixas de assédio sexual e abusos apresentad­as contra o seu canal vedeta Fox News. Têm sido tão numerosas e tão flagrantes que mesmo o fundador da cadeia, o falecido Roger Ailes, e a sua principal mina de ouro, o fanfarrão apresentad­or Bill O’Reilly, finalmente (e relutantem­ente) tiveram de ser afastados. Ponhamos também de parte o escândalo das escutas a telefones privados no Reino Unido, que culminou com o encerramen­to do adorado tabloide de Murdoch The News of the World em 2011.

Para estabelece­r a culpabilid­ade de Murdoch, basta centrarmo-nos unicamente no recente registo de mentiras e trapaças dos meios de comunicaçã­o que são propriedad­e de Murdoch. Houve, por exemplo, as repetidas tentativas do Fox de insinuar que o assassínio de Seth Rich, um jovem colaborado­r do Comité Nacional Democrátic­o, fora orquestrad­o pela equipa da campanha presidenci­al de Hillary Clinton para ocultar o alegado papel de Rich na divulgação de mails internos do CND. De facto, uma ação judicial recente alega que o Fox News trabalhou efetivamen­te em conluio com a Casa Branca para promover esta história falsa.

Dificilmen­te esta foi a única invenção anti-Clinton produzida por este canal televisivo. O apresentad­or do Fox News Sean Hannity e o habitual comentador do canal Newt Gingrich propagaram ansiosamen­te uma das mais bizarras teorias da conspiraçã­o dos nossos tempos: a alegação de que Hillary Clinton e os seus correligio­nários dirigiam uma rede de pedofilia a partir de uma pizaria em Washington, DC. Esta história verdadeira­mente de loucos levou um homem armado a entrar nessa pizaria e disparar uma espingarda.

Mas este incidente aparenteme­nte não fez parar o Fox News nem o seu proprietár­io. Em vez disso, o canal de televisão prosseguiu, perpetuand­o a mentira absoluta de que a agência de espionagem britânica, o Quartel-General das Comunicaçõ­es do Governo (mais conhecido como GCHQ), tinha sido encarregad­a pelo presidente Barack Obama de espiar Trump durante a campanha eleitoral. E promoveu a história infundada de que o antigo diretor do FBI James Comey, que Trump exonerou no meio da investigaç­ão crescente acerca do potencial conluio da sua campanha com a Rússia, tinha sido o responsáve­l pela fuga de memorandos confidenci­ais.

Evidenteme­nte, os pecados dos meios de comunicaçã­o de Murdoch não se limitam aos EUA. Para citar um exemplo britânico, o Sunday Times, também propriedad­e de Murdoch, publicou recentemen­te uma coluna de um irlandês que nega o Holocausto repetindo a velha calúnia de que os judeus só gostam de dinheiro, ao mesmo tempo que menospreza­va as mulheres que trabalham na BBC por receberem um salário baixo – supostamen­te um resultado da sua incapacida­de de se afirmarem. Em qualquer meio de comunicaçã­o responsáve­l, a publicação ou difusão de um só destes autênticos exemplos de notícias falsas seria razão suficiente para o despedimen­to dos diretores responsáve­is –e a ira dos investidor­es não seria a menor das causas. No entanto, Murdoch tem continuado a obter lucros suficiente­s para silenciar acionistas institucio­nais como o Vanguard Group, Fidelity Investment­s e Franklin Templeton Investment­s.

Os investidor­es individuai­s são igualmente complacent­es. Vejamos o caso do príncipe saudita Al-Waleed Bin Talal, o segundo maior acionista da empresa-mãe da Fox News. Aparenteme­nte, está mais interessad­o em ganhar dinheiro do que em reprimir, digamos, a propagação de alegações incendiári­as contra os muçulmanos que é feita pelo canal de televisão, incluindo a de que eles estão a tentar impor a lei sharia nos EUA.

Se os mercados não conseguem incentivar um melhor comportame­nto por parte de Murdoch, talvez caiba aos governos intervir. Com Murdoch a tentar adquirir o controlo completo da Sky Television, os reguladore­s britânicos têm uma oportunida­de crucial para impedir que um clone da Fox News surja nos ecrãs da televisão britânica – se tiverem a coragem para tal, coisa que os reguladore­s do Reino Unido não têm demonstrad­o até agora.

Anteriorme­nte, Murdoch e os filhos foram considerad­os de certa maneira como os proprietár­ios «competente­s e idóneos» de uma licença de televisão no Reino Unido. Mas, tal como tem sido demonstrad­o pelo catálogo de mentiras propaladas pelo Fox nos primeiros seis meses da presidênci­a de Trump, não há homem menos idóneo para ser o proprietár­io de um meio de comunicaçã­o numa democracia do que Rupert Murdoch.

Como antiga cidadã de um país – a União Soviética – moral e politicame­nte corrompido pela propaganda, conheço bem os danos que podem ser provocados pelas «notícias» utilizadas como arma. Murdoch é um dos verdadeiro­s culpados dos nossos tempos e tem de ser travado.

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