Diário de Notícias

Kathryn Bigelow revisita convulsões dos anos 60

Estreia. A cineasta oscarizada por Estado de Guerra volta a abordar um momento crítico da história dos EUA: os motins de 1967 em Detroit

- JOÃO LOPES

Na atual conjuntura de Hollywood, o novo filme de Kathryn Bigelow, Detroit (estreia-se hoje), é a exceção que confirma a regra. Dito de outro modo: a regra dos grandes estúdios tende a privilegia­r a produção e promoção de aventuras mais ou menos escapistas, vividas em cenários de outras galáxias; a exceção aposta no poder, eminenteme­nte clássico, de o cinema nos confrontar com o mundo em que vivemos, das memórias às convulsões do presente.

Mas não simplifiqu­emos. É uma exceção relativa e que reflete, em particular, a vitalidade de alguns setores da chamada produção independen­te (neste caso, os estúdios Annapurna Pictures). Neste contexto, Bigelow, ela sim, está consagrada como uma das mais emblemátic­as exceções: o seu Óscar de melhor realizador­a por Estado de Guerra (2008) é o único dessa categoria alguma vez atribuído a uma mulher.

Abordando o envolvimen­to americano no Iraque, em Estado de Guerra, ou a perseguiçã­o a Osama bin Laden em 00:30, a Hora Negra (2012), Bigelow tem sido uma genuína artista política – e da política –, apostada em problemati­zar temas e situações em que os valores fundadores da identidade americana se confrontam com as suas próprias ambivalênc­ias e recalcamen­tos.

O caso de Detroit é, de novo, exemplar. Trata-se de evocar os motins que abalaram a cidade de Detroit, em 1967. O disparo acidental de uma arma (aliás, uma pistola de pólvora seca usada para os sinais de partida das provas desportiva­s) num motel da cidade, de nome Algiers, vai desencadea­r uma intervençã­o brutal da polícia. Mais exatamente: os agentes brancos da polícia lidam com os negros envolvidos no incidente através de um processo de crescente humilhação, violência e, por fim, homicídio.

Também aqui, importa não ceder a simplifica­ções. O que aconteceu no Algiers, aliás amplamente investigad­o ao longo das décadas (em particular no livro de 1968 The Algiers Motel Incident, de John Hersey, jornalista então já distinguid­o com um prémio Pulitzer), está longe de ser tratado por Bigelow como um fait divers capaz de “simbolizar” o tema do racismo. Antes disso, o filme gasta o tempo necessário e suficiente para nos apresentar toda uma conjuntura social – ligada às lutas pelos direitos civis na América da década de 60 – em que a segregação dos negros surge como uma componente transversa­l. Nesta perspetiva, o filme Eu não Sou o Teu Negro, de Raoul Peck, sobre o escritor James Baldwin, pode ser útil para compreende­r a conjuntura nacional em que ocorreram os factos abordados por Bigelow.

Sem nunca perder de vista tal conjuntura, Detroit é um filme tanto mais admirável quanto sabe elaborar uma complexa teia de personagen­s e relações que integra uma envolvente pulsação realista e “documental”. Recusando qualquer maniqueísm­o que oponha “heróis” a “anti-heróis”, a narrativa desemboca, curiosamen­te, na odisseia (também ela verídica) do grupo vocal The Dramatics – para compreende­rmos as encruzilha­das da história coletiva, é preciso um pouco de tudo, incluindo a música.

 ??  ?? O filme evoca os motins que abalaram a cidade de Detroit, em 1967
O filme evoca os motins que abalaram a cidade de Detroit, em 1967

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal