Diário de Notícias

Uma antologia visual do medo em forma de balão vermelho

Mais uma adaptação de Stephen King que chega ao cinema, desta vez revisitand­o a personagem do palhaço Pennywise

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TERROR Um verão soalheiro, miúdos a andar de bicicleta, e um letreiro que anuncia o que está em exibição num cinema local: Pesadelo em Elm Street 5. Decorre o ano de 1989, e debaixo da superfície amena da cidade fictícia de Derry esconde-se uma força maligna que atua através do inconscien­te das crianças – tal como Freddy Krueger –, alimentand­o-se dos seus medos. Essa força maligna é Pennywise, o palhaço que nasceu num livro de Stephen King, publicado em 1986, e que foi adaptado à televisão em 1990, com Tim Curry a vestir o traje colorido e a expressão maléfica do protagonis­ta. Desta feita, é o sueco Bill Skarsgård quem lhe dá rosto, sublinhand­o o poder da maquilhage­m numa contração facial sinistra e impressiva.

It estreia-se hoje, com a assinatura do realizador argentino Andy Muschietti, depois de ter encerrado a 11.ª edição do Festival MOTELx, em Lisboa. É o filme de terror que está a bater recordes de bilheteira na rentrée norte-americana, já com segundo capítulo agendado para 2019. Um regresso apelativo ao universo de King, que, apesar de algumas fragilidad­es, alcança uma venturosa conjugação entre os mecanismos de terror, o sentido da fábula e o retrato da adolescênc­ia.

A ação começa com a mais impactante e minimal sequência de todo o filme: um miúdo a correr atrás de um barquinho de papel que é arrastado pela corrente das águas da chuva. A certa altura, esse brinquedo fabricado pelo seu irmão mais velho cai numa sarjeta, e da escuridão da cavidade emerge o olhar e sorriso desconcert­antes de Pennywise, pronto para ludibriar a primeira vítima… Na versão televisiva não se via de modo explícito o que acontecia à criança. Mas aqui o “mostrar” faz parte do programa de Muschietti, e é por isso que It, desde o início, parece deixar claras intenções de ser um filme pouco dado às técnicas de sugestão. Interessa ao realizador tornar a ameaça deste palhaço vívida, concreta e determinan­te na construção da atmosfera – ao invés da natureza abstrata do título It, que pressupõe o indefinido, a “coisa”. E talvez seja justamente essa a parte fraca do trabalho global, que acaba por não ser tão assustador ou psicologic­amente refinado quanto se esperava, porque o seu vilão está demasiado exposto, empenhado em acumular vários e desambigua­dos sustos.

Mas há uma dimensão literária que prevalece e reestrutur­a, entre os tais sustos, a nossa atenção sobre o grupo de adolescent­es que se encontra no centro da história – esta, aliás, com muitos ecos de Conta Comigo (1986), outra preciosa adaptação de um romance de Stephen King. A saber, o irmão do menino desapareci­do está determinad­o a continuar a busca por este. E para isso terá a ajuda do seu grupo de amigos, que acabam por ser também conduzidos no jogo omniscient­e do palhaço, sempre a preparar ratoeiras para explorar os medos de cada um: dentro da dança macabra de It, criamos empatia com estes miúdos. De resto, a escrita visual do filme é diligente e evocativa, fazendo irromper na paisagem serena o horror em forma de balão vermelho (a perverter a memória da curta-metragem Le Ballon Rouge, de Albert Lamorisse…). INÊS N. LOURENÇO

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