Coreógrafa uruguaia apresenta a sua cujo último ato terá estreia mundial no Teatro São Luiz, em Lisboa
Trilogia Antropofágica
MARIA JOÃO CAETANO A porta do teatro abre-se às 19.00 e vai ficar assim até à meia-noite para quem quiser entrar, sair, beber um copo, voltar. Ao longo dessas cinco horas, o público é convidado a subir ao palco. Uma pessoa de cada vez pode ir experimentar o chão de carvão, instável. Até que uma outra pessoa chegue para assumir esse lugar. Permanecer, assim se chama o espetáculo da uruguaia Tamara Cubas com que o Teatro São Luiz marca a abertura da sua temporada e que é também o primeiro ato da Trilogia Antropofágica que esta coreógrafa apresenta neste mês em Lisboa.
“O chão treme e as pessoas começam por ficar muito tensas. Mas depois acostumam-se”, explica Tamara Cubas, com o seu sotaque espanhol abrasileirado. “A pessoa que está lá não sabe quando vai vir alguém, a pessoa que está fora fica a pensar se já está na hora de subir ou não. E é lindo ver como as pessoas se auto-organizam, é coisa até um pouco utópica, como assumem essa responsabilidade coletiva de que alguém tem de permanecer.” Permanecer também no sentido em que, apesar de o público estar dentro da peça, ela existe para além dele: “Sabemos que podemos sair e a peça vai continuar ali.” A experiência repete-se amanhã.
A Trilogia Antropofágica partiu de um desejo muito grande por parte de Tamara Cubas de “fazer qualquer coisa” a partir de três espetáculos de coreógrafos brasileiros que ela adorou. “Sabe quando você vê uma coisa e pensa eu queria ter feito isto? Eu quero fazer isto”, explica. O primeiro ato parte de Vestígios, de Marta Soares (2010). O segundo ato, Resistir, serve-se de Matadouro, de Marcelo Evelín (que foi visto em Portugal em 2011) e o terceiro ato, Ocupar, inspira-se em Pororoca, de Lia Rodrigues (apresentado entre nós em 2010).
“Mais do que inspirar a criação, cada uma das peças é comida por nós”, arrisca Tamara Cubas. E explica: “Há já algum tempo que ando a trabalhar sobre a ideia de autoria e apropriação, que tem também que ver com o pensar o modo como nos relacionamos com o outro. Como é que o outro nos afeta e como é que nos deixamos afetar, será possível deixar o outro entrar sem racionalizar muito essa relação, sem ter de entender tudo.” É aqui que o conceito de antropofagia entra. O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade é de 1928 mas, desde então, muitos criadores têm recorrido a esta ideias de contaminação.
Em Resistir, o segundo ato, que será apresentado nos dias 19 e 20, o chão será de madeira e o público vai estar sentado nesse chão mas em volta dos performers, já não tem o protagonismo. “O movimento contínuo e em crescendo dos intérpretes repercute neles, criando uma comunhão e uma força enorme”, explica Tamara Cubas. “É uma resistência que emana uma potência, daqui tudo pode acontecer.” E é também uma resistência à divisão entre palco e plateia que simboliza o “encapsulamento” que o nosso pensamento faz constantemente, colocando as pessoas em gavetas. É um resistir para libertar.
Por fim, Ocupar. Este terceiro ato está ainda a ser criado, em conjunto pelo grupo de bailarinos que veio com Tamara Cubas e mais cinco bailarinos escolhidos dos 12 que se apresentaram em audição em Lisboa nesta semana, e terá estreia mundial aqui (dias 23 e 24). A coreógrafa ainda não pode dizer qual será o resultado mas já sabe que desta vez o público estará afastado do palco e haverá um muro feito com tábuas. “Será que, estando longe, poderemos afetar o outro?” TRILOGIA ANTROPOFÁGICA. PRIMEIRO ATO: PERMANECER