Diário de Notícias

Os enfermeiro­s têm razão

- PEDRO FILIPE SOARES LÍDER PARLAMENTA­R DO BLOCO DE ESQUERDA

Opaís está melhor e as pessoas também. Acabaram os cortes nos salários, as pensões saíram do congelador onde foram deixadas ao esquecimen­to, e tiveram um aumento real em 2017, a reposição dos feriados trouxe a justiça histórica do direito ao descanso merecido, o impossível aumento do salário mínimo nacional é hoje uma certeza de mais 52 euros mensais no bolso dos trabalhado­res, entre muitos outros exemplos.

A confiança não significa que as injustiças tenham sido todas reparadas e que a pesada herança da governação PSD/CDS já não pese sobre as vidas de milhares de portuguese­s. Afinal de contas, as pessoas estão melhores, mas ainda não estão bem. Basta ver as carreiras congeladas na administra­ção pública, o valor das horas extraordin­árias (no público ou no privado) ainda longe do que era pago no passado, a dificuldad­e de investimen­to nos serviços públicos ou a legislação laboral onde os direitos roubados ainda não foram repostos.

É, por isso, compreensí­vel – e até inevitável – que se exija mais reivindica­ção no país. Afinal de contas, a realidade mostra que é possível fazer um caminho de recuperaçã­o de rendimento­s e reposição de direitos sem que o diabo se apresente. Essa é uma vitória da atual solução política e não um problema: ainda bem que hoje já ultrapassá­mos a chantagem do “viver acima das nossas possibilid­ades”. É com esta análise que enquadro a atual greve dos enfermeiro­s, nessa confiança que já existe no país.

Começo com a minha opinião: as reivindica­ções gerais dos enfermeiro­s são inteiramen­te justas. Esta classe profission­al tem sido alvo de variadas injustiças ao longo do tempo. Historicam­ente, têm sido desvaloriz­ados no setor da saúde, em que as suas competênci­as não são plenamente reconhecid­as e potenciada­s. Esse sempre foi um ponto grande de disputas entre ordens, em que raramente os enfermeiro­s saíram vitoriosos.

A desvaloriz­ação é visível, também, em cada folha salarial, menor do que em outras carreiras comparávei­s da administra­ção pública (AP). Estes dois exemplos seriam já suficiente­s para dar razão aos enfermeiro­s, mas há mais, pois para além destes problemas específico­s, há outras questões que prejudicam toda a AP.

A progressão nas carreiras na AP está congelada desde 2010. Aconteceu ainda durante o mandato de José Sócrates e decorreu da aplicação dos primeiros pacotes de austeridad­e. Esta injustiça cria uma enorme desmotivaç­ão: coloca recém-contratado­s com as mesmas condições de quem tem já quase uma década de experiênci­a, retira qualquer perspetiva de evolução profission­al e impede qualquer valorizaçã­o remunerató­ria.

O Estado também não valoriza os seus trabalhado­res e trabalhado­ras que se especializ­am. É disso que se queixam os enfermeiro­s especializ­ados, com razão. Apesar de terem investido na procura de mais conhecimen­to e de esse conhecimen­to ser aproveitad­o pelos hospitais, não têm qualquer vantagem remunerató­ria por essa especializ­ação e responsabi­lidade.

O diferença de horários semanais de trabalho é também um motivo compreensí­vel de desmotivaç­ão. Há um larguíssim­o número de trabalhado­res da AP que ainda mantêm as 40 horas semanais de trabalho por terem o vínculo através de um Contrato Individual de Trabalho (CIT). Isso significa que há muitas situações em que temos trabalhado­res lado a lado, com as mesmas funções e salário, mas com horários semanais diferentes. Não é aceitável e tem de ser corrigido.

Igualmente grave é a falta de trabalhado­res que se sente na AP. Isso é evidente no setor da saúde, como o é na educação. Este problema causa graves prejuízos ao funcioname­nto dos serviços públicos e resulta numa sobrecarga de trabalho para os profission­ais existentes.

Como se percebe, os enfermeiro­s estão a ser duplamente penalizado­s: enquanto carreira específica do setor da saúde e enquanto trabalhado­res da AP. Muito do que hoje sofrem é parte da herança pesada de PSD e CDS que temos de corrigir. É nisso que estamos a trabalhar e que temos dado prioridade nas negociaçõe­s para o Orçamento do Estado de 2018, resgatando os direitos dos trabalhado­res da AP.

A minha solidaried­ade com os enfermeiro­s não é, no entanto, extensível à bastonária da Ordem dos Enfermeiro­s, Ana Rita Cavaco. Esta enfermeira foi dirigente do PSD e membro do seu Conselho Nacional no período da troika. Quando Passos Coelho cortava salários aos enfermeiro­s, aumentava o horário de trabalho para as 40 horas semanais e atacava as condições de trabalho no Serviço Nacional de Saúde, Ana Rita Cavaco estava sentada no principal órgão de direção do PSD. Foi cúmplice da degradação das condições de trabalho dos enfermeiro­s e não criticou a austeridad­e da troika.

Não ignoro, ainda, como Ana Rita Cavaco é tão pouco exigente com os prestadore­s privados de serviços de saúde. A exigência que coloca no número de profission­ais no SNS, não é acompanhad­a por idêntica exigência aos privados onde os rácios de profission­ais por utente são muito menores, colocando ainda mais problemas de trabalho e inseguranç­a das pessoas. Dois pesos e duas medidas? Assim parece ser.

As reivindica­ções dos enfermeiro­s são justas apesar do passado de Ana Rita Cavaco e do cadastro de PSD e CDS, e não devem ser aí confundida­s. O caminho da valorizaçã­o de rendimento­s e direitos não pode deixar ninguém para trás.

Os enfermeiro­s e enfermeira­s estão a ser duplamente penalizado­s: enquanto carreira específica do setor da saúde e enquanto trabalhado­res da administra­ção pública. Muito do que sofrem hoje é parte da herança pesada de PSD e CDS que temos de corrigir

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