Diário de Notícias

Sobre o estado da União (1/2)

- POR VÍTOR BENTO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Opresident­e da Comissão Europeia fez, na passada quarta-feira, o discurso do Estado da União. Com as velas enfunadas de um mal fundado optimismo económico, e depois de há seis meses ter apresentad­o cinco cenários demasiado vagos – como aqui critiquei – para o futuro da UE, Juncker fez, na passada quarta-feira, um discurso sobre o Estado da União com uma visão muito assertiva e em que enunciou um rumo claro, que só pode conduzir a um destino: uma união política.

Deixando de lado a retórica decorativa do discurso, a componente institucio­nal do programa político do ex-primeiro-ministro luxemburgu­ês é clara: a) criação de um embrião de governo da União Europeia, tendo à cabeça o presidente da Comissão, que deverá ser simultanea­mente o presidente do Conselho Europeu, e dois braços executivos, constituíd­os, por um lado, pela alta representa­nte da União para os Negócios Estrangeir­os e Política de Segurança (uma espécie de ministra dos Negócios Estrangeir­os da União) e vice-presidente da Comissão, e, por outro, pelo proposto novo lugar de ministro da Economia e Finanças, também vice-presidente da Comissão e presidente, por inerência, do Eurogrupo; b) instituiçã­o de uma estrutura comum de defesa (União Europeia de Defesa), que não deixará de constituir – como creio ser inevitável – o embrião de umas Forças Armadas Europeias; c) completa integração de todos os membros da UE, alargando a esfera de Schengen e levando todos os membros a adoptar o euro e a união bancária num futuro próximo; d) transforma­ção do ESM em Fundo Monetário Europeu. Seguir-se-ão, estou convencido, propostas para um maior orçamento comunitári­o e para mutualizaç­ões financeira­s.

A proposta de Juncker é, goste-se ou não, o caminho lógico para resolver, preservand­o o euro, a insustentá­vel contradiçã­o em que assenta a União Monetária (UM), desde a sua criação em Maastricht, e que é, na minha opinião, a causa fundamenta­l do brexit. Contradiçã­o que decorre de se ter aceitado impor a moeda única como destino obrigatóri­o de todos os Estados membros da UE (os que ainda não adoptaram o euro estão em derrogação transitóri­a), ao mesmo tempo que se tem recusado promover a integração política. Ora, sem esta, a união monetária é insustentá­vel, como mostrou a recente crise e a profunda ferida que abriu dentro da União. E tentar impô-la pela “porta do cavalo”, colocando entidades administra­tivas (v.g. DGComp e SSM, por exemplo), a tomar, centraliza­damente e de cima para baixo, decisões profundame­nte políticas, sob capa técnica, não é via democrátic­a ou eticamente aceitável e só vai criar mais ressentime­ntos.

Por conseguint­e, o caminho apontado pelo presidente da CE é o corolário lógico de Maastricht, e foi por o Reino Unido perceber isso, e que a recente crise do euro tornara esse corolário inadiável, que o brexit acabaria por correr, mais cedo ou mais tarde.

Se esse caminho vai ser aceite, viabilizan­do a UM, ou se vai ser recusado, continuand­o a deixar a sobrevivên­cia desta na corda bamba, é o que se verá nos próximos meses. Não creio que existam as condições políticas, nomeadamen­te em França, necessária­s para tal. E creio que teria sido mais sensato retirar do tratado a exigência de adopção da moeda única, preservand­o a flexibilid­ade cambial que a rigidez conceptual do euro e a manifesta relutância de maior integração política tem provado ser mais eficaz para lidar com choques económicos (o grupo de países fora do euro tem crescido mais do que o grupo do euro, sobretudo se deste excluirmos a Alemanha).

Três recentes acontecime­ntos políticos foram, porém, determinan­tes para a aceleração do processo mental de que emerge a proposta de Juncker e que poderão também vir a revelar-se determinan­tes para que esta encontre terreno mais fácil do que, noutras circunstân­cias, seria de esperar: I) o brexit, abrindo a porta de saída, e desenhando o mapa do caminho, aos descontent­es da União, mostrando que esta não é irrevogáve­l; II) a inchada resposta popular à chamada dos extremismo­s populistas, ameaçando, por dentro, o processo de integração; e III) a eleição de Trump como presidente dos EUA e o seu desenfoque europeu, sobretudo no campo da defesa, cuja responsabi­lidade primária quer imputar directamen­te aos europeus.

Como já aqui argumentei há três meses (“A Europa vai mudar”), a necessidad­e de a Europa se responsabi­lizar pela sua própria defesa vai ser o instigador da mudança de atitudes – nomeadamen­te da Alemanha – que poderá facilitar o entendimen­to para uma maior eficácia da UE e, em particular, da zona euro.

Poucos terão notado, mas o discurso conteve uma grave gafe, que demonstra bem como a Comissão Europeia olha para Península Ibérica, como tem sido patente nalgumas decisões recentes das entidades que acima referi. Sob a égide, curiosamen­te, do enunciado de que “a Europa deve ser uma União de igualdade”, afirma, descrevend­o os limites geográfico­s da União, que “não nos enganemos, a Europa estende-se de Vigo a Varna. Da Espanha à Bulgária”. Ora, como se sabe, e a Comissão Europeia devia saber, Lisboa é extremo mais ocidental do queVigo. Mas ainda que a escolha deste nome fosse para soar mais poeticamen­te associado a Varna, Portugal (e não Espanha) também é o país mais ocidental da Europa e não há qualquer poesia na segunda associação. Não é preciso ser freudiano para perceber como estes lapsos revelam a cabeça da pessoas (e das instituiçõ­es, neste caso). As autoridade­s (e as elites) portuguesa­s é que têm andado distraídas...

A proposta de Juncker é, goste-se ou não, o caminho lógico para resolver, preservand­o o euro, a insustentá­vel contradiçã­o em que assenta a União Monetária, desde a sua criação em Maastricht, e que é, na minha opinião, a causa fundamenta­l do brexit

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