Sobre o estado da União (1/2)
Opresidente da Comissão Europeia fez, na passada quarta-feira, o discurso do Estado da União. Com as velas enfunadas de um mal fundado optimismo económico, e depois de há seis meses ter apresentado cinco cenários demasiado vagos – como aqui critiquei – para o futuro da UE, Juncker fez, na passada quarta-feira, um discurso sobre o Estado da União com uma visão muito assertiva e em que enunciou um rumo claro, que só pode conduzir a um destino: uma união política.
Deixando de lado a retórica decorativa do discurso, a componente institucional do programa político do ex-primeiro-ministro luxemburguês é clara: a) criação de um embrião de governo da União Europeia, tendo à cabeça o presidente da Comissão, que deverá ser simultaneamente o presidente do Conselho Europeu, e dois braços executivos, constituídos, por um lado, pela alta representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança (uma espécie de ministra dos Negócios Estrangeiros da União) e vice-presidente da Comissão, e, por outro, pelo proposto novo lugar de ministro da Economia e Finanças, também vice-presidente da Comissão e presidente, por inerência, do Eurogrupo; b) instituição de uma estrutura comum de defesa (União Europeia de Defesa), que não deixará de constituir – como creio ser inevitável – o embrião de umas Forças Armadas Europeias; c) completa integração de todos os membros da UE, alargando a esfera de Schengen e levando todos os membros a adoptar o euro e a união bancária num futuro próximo; d) transformação do ESM em Fundo Monetário Europeu. Seguir-se-ão, estou convencido, propostas para um maior orçamento comunitário e para mutualizações financeiras.
A proposta de Juncker é, goste-se ou não, o caminho lógico para resolver, preservando o euro, a insustentável contradição em que assenta a União Monetária (UM), desde a sua criação em Maastricht, e que é, na minha opinião, a causa fundamental do brexit. Contradição que decorre de se ter aceitado impor a moeda única como destino obrigatório de todos os Estados membros da UE (os que ainda não adoptaram o euro estão em derrogação transitória), ao mesmo tempo que se tem recusado promover a integração política. Ora, sem esta, a união monetária é insustentável, como mostrou a recente crise e a profunda ferida que abriu dentro da União. E tentar impô-la pela “porta do cavalo”, colocando entidades administrativas (v.g. DGComp e SSM, por exemplo), a tomar, centralizadamente e de cima para baixo, decisões profundamente políticas, sob capa técnica, não é via democrática ou eticamente aceitável e só vai criar mais ressentimentos.
Por conseguinte, o caminho apontado pelo presidente da CE é o corolário lógico de Maastricht, e foi por o Reino Unido perceber isso, e que a recente crise do euro tornara esse corolário inadiável, que o brexit acabaria por correr, mais cedo ou mais tarde.
Se esse caminho vai ser aceite, viabilizando a UM, ou se vai ser recusado, continuando a deixar a sobrevivência desta na corda bamba, é o que se verá nos próximos meses. Não creio que existam as condições políticas, nomeadamente em França, necessárias para tal. E creio que teria sido mais sensato retirar do tratado a exigência de adopção da moeda única, preservando a flexibilidade cambial que a rigidez conceptual do euro e a manifesta relutância de maior integração política tem provado ser mais eficaz para lidar com choques económicos (o grupo de países fora do euro tem crescido mais do que o grupo do euro, sobretudo se deste excluirmos a Alemanha).
Três recentes acontecimentos políticos foram, porém, determinantes para a aceleração do processo mental de que emerge a proposta de Juncker e que poderão também vir a revelar-se determinantes para que esta encontre terreno mais fácil do que, noutras circunstâncias, seria de esperar: I) o brexit, abrindo a porta de saída, e desenhando o mapa do caminho, aos descontentes da União, mostrando que esta não é irrevogável; II) a inchada resposta popular à chamada dos extremismos populistas, ameaçando, por dentro, o processo de integração; e III) a eleição de Trump como presidente dos EUA e o seu desenfoque europeu, sobretudo no campo da defesa, cuja responsabilidade primária quer imputar directamente aos europeus.
Como já aqui argumentei há três meses (“A Europa vai mudar”), a necessidade de a Europa se responsabilizar pela sua própria defesa vai ser o instigador da mudança de atitudes – nomeadamente da Alemanha – que poderá facilitar o entendimento para uma maior eficácia da UE e, em particular, da zona euro.
Poucos terão notado, mas o discurso conteve uma grave gafe, que demonstra bem como a Comissão Europeia olha para Península Ibérica, como tem sido patente nalgumas decisões recentes das entidades que acima referi. Sob a égide, curiosamente, do enunciado de que “a Europa deve ser uma União de igualdade”, afirma, descrevendo os limites geográficos da União, que “não nos enganemos, a Europa estende-se de Vigo a Varna. Da Espanha à Bulgária”. Ora, como se sabe, e a Comissão Europeia devia saber, Lisboa é extremo mais ocidental do queVigo. Mas ainda que a escolha deste nome fosse para soar mais poeticamente associado a Varna, Portugal (e não Espanha) também é o país mais ocidental da Europa e não há qualquer poesia na segunda associação. Não é preciso ser freudiano para perceber como estes lapsos revelam a cabeça da pessoas (e das instituições, neste caso). As autoridades (e as elites) portuguesas é que têm andado distraídas...
A proposta de Juncker é, goste-se ou não, o caminho lógico para resolver, preservando o euro, a insustentável contradição em que assenta a União Monetária, desde a sua criação em Maastricht, e que é, na minha opinião, a causa fundamental do brexit