Guerrilheira, senadora, primeira-dama e agora vice-presidente do Uruguai A mulher do ex-presidente José Mujica assume o cargo após a renúncia de Raul Sendic, por mau uso de fundos públicos
Lucía Topolansky estudava Arquitetura quando, para ajudar a pagar as contas, aceitou um emprego na Financeira Monty. No banco privado, descobriu um esquema de contabilidade paralela que denunciou aos camaradas dos tupamaros, ajudando a organizar uma das ações mais espetaculares da guerrilha urbana. A 16 de fevereiro de 1969, assaltaram o banco e roubaram não apenas dinheiro, mas documentos que provavam a fraude. Lucía tornava-se então Ana e entrava na clandestinidade. Agora, quase meio século depois, a ex-guerrilheira que se tornou senadora e que se casou com José Pepe Mujica, conhecido como o “presidente mais pobre do mundo” durante o mandato de 2010 a 2015, tornou-se vice-presidente do Uruguai.
A Constituição uruguaia diz que, em caso de demissão do vice-presidente, o cargo deve ser assumido pelo senador do mesmo partido que tenha sido o mais votado nas últimas eleições. Raul Sendic demitiu-se, no sábado, por causa de suspeitas de uso indevido de fundos públicos quando estava à frente da petrolífera estatal Ancap. Segundo a lei, seria Mujica a assumir o cargo, mas a Constituição proíbe-o. O que significa que Lucía Topolansky, a segunda mais votada, se tornou a primeira mulher vice-presidente do Uruguai.
Amanhã, quando o presidente Tabaré Vázquez partir para Nova Iorque para a Assembleia Geral das Nações Unidas, assumirá pela terceira vez a presidência. Em duas ocasiões, quando o marido estava na presidência e viajou para o exterior ao mesmo tempo que o vice-presidente, Danilo Astori, coube a Mujica e Lucía namoravam há poucos meses quando foram presos. Passaram 13 anos separados, antes da amnistia de 1985. Companheiros desde então, casaram-se em 2005 Lucía, então também a senadora com mais votos, assumir o poder. “Dou-te dois dias para resolveres todos os conflitos”, terá dito então Mujica à mulher antes de viajar.
Lucía Topolansky representa o Movimento de Participação Popular (MPP), uma das alas mais à esquerda dentro da coligação Frente Ampla – que desde 2005 governa o Uruguai. Ainda antes da senadora tomar posse como vice-presidente, Vázquez apressou-se a desmentir quaisquer rumores sobre um eventual desentendimento entre ambos. O presidente expressou a sua “felicidade e honra” por ter a oportunidade de trabalhar junto com Topolansky: “Estou lisonjeado pela oportunidade por causa da experiência que tem na vida política, militante de primeira linha, profunda conhecedora da realidade do país, do sistema político e com vastíssima experiência legislativa.”
Lucía Topolansky, que faz 73 anos na próxima semana, nasceu numa família da classe média alta – o pai, de origem polaca, era engenheiro civil e empresário do ramo da construção. Ela e os irmãos, incluindo a irmã gémea María, estudaram em escolas privadas mas sempre com uma veia revolucionária – as irmãs chegaram a organizar uma espécie de greve no colégio que frequentavam. Quando já frequentava Arquitetura, fez projetos nos bairros pobres de Montevideu.
Em 1967 juntou-se ao Movimento de Libertação Nacional –Tupamaros (inspirado pela Revolução Cubana e pelo marxismo), desistindo do curso dois anos depois. Já na clandestinidade, como Ana, conheceu Mujica, dez anos mais velho. “Juntou-nos o medo”, disse o ex-presidente num jantar, segundo o livro Uma Ovelha Negra no Poder. Namoravam há poucos meses quando foram presos, pelas ações da guerrilha. Lucía foi detida em 1971, fugindo pouco depois junto com outras 37 reclusas. Mas voltaria a ser capturada em 1972, um ano antes do golpe de Estado que poria os militares no poder até 1985. Durante os quase 13 anos que esteve detida, foi alvo de torturas e períodos de isolamento, como o futuro marido, com quem manteve o contacto através de cartas e que reencontrou após a aprovação de uma amnistia, em 1985.
O casal, que resolveu não ter filhos e só se casou em 2005, foi viver então para uma quinta nos arredores da capital – a mesma onde continuam a viver hoje. Plantavam flores que depois vendiam nos mercados, continuando a sua carreira política com a criação do MPP e a sua inclusão na Frente Ampla em 1989. Em 1995, foi eleita suplente para a Assembleia Legislativa de Montevideu e cinco anos depois tornava-se deputada. Nas eleições seguintes seria reeleita. Em 2005, Mujica teve de deixar o cargo de senador para ser ministro da Agricultura e Lucía, que era a sua suplente, entrou no Senado. Em 2009, foi a mais votada, cabendo-lhe a ela liderar a cerimónia de tomada de posse do marido como presidente do Uruguai, sendo reeleita há três anos.