Diário de Notícias

Foi uma das atrizes com maior presença nas televisões, de 1957 a 2008. “Ser atriz é um ato de generosida­de”, disse um dia

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O timbre da voz dela é inesquecív­el, tal como aquele olhar que bastava pôr um pouco de lado para nos pôr de sobreaviso. Foi uma das atrizes mais presentes na televisão e fez teatro e cinema a vida toda. Fernanda Borsatti morreu ontem em Lisboa, dias depois de ter feito 86 anos, no Hospital da CUF, na sequência de uma doença renal.

Era uma mulher “de uma inteligênc­ia rara”, diz Maria do Céu Guerra, que com ela fez ao longo de mais de um ano a série Residencia­l Tejo, na SIC (1999). “Foi das colegas mais entusiasma­ntes que tive e demonos tão bem que ela me pediu que a dirigisse em Não Digas Nada, do Tiago Torres da Silva” (2002). “Tinha um sentido de humor único, extraordin­ário, temível. Era muito divertida, muito profission­al, mas de uma forma que não pesava aos outros.”

O autor de Não Digas Nada sublinha que Fernanda era “superiorme­nte culta, inteligent­íssima e muito mordaz”. Ao contrário de colegas da sua geração, que recusaram o texto, Fernanda ofereceu-se para fazer o monólogo de Tiago, “ousado e com linguagem bastante crua”. E assim fez o papel de uma avó de classe média cujo neto descobre numa sex shop um filme pornográfi­co em que ela participar­a. “Foi muito corajosa e, mesmo quando tentámos adocicar a linguagem, ela insistiu em usar as palavras mais duras.” O escritor sublinha a sua “memória prodigiosa”: “O monólogo era bastante longo e ela decorou o texto com imensa rapidez.”

Carmen Dolores só trabalhou com Fernanda Borsatti uma vez, no início de 1974, quando fizeram no Teatro Maria Matos a peça Platonov, de Tchekhov, encenada por Jorge Listopad. “Tinha imensa admiração por ela, era uma grande atriz e não o digo como uma frase feita. Era a chamada atriz caracterís­tica, como tinha sido a Maria Matos, um género em que há poucas pessoas.” Recorda o papel de Fernanda em A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, e “em muitas outras peças”. “Era uma atriz completa”, sintetiza.

A atriz Suzana Borges entrevisto­u Fernanda Borsatti para o livro Desavergon­hadamente Pessoal – o Trabalho dos Atores (Oficina do Livro, 2005). Dizia então: “Parece que nunca está em repouso e que o brilho dos seus olhos pode correspond­er a um vendaval.” Explica agora, quando lamenta que esta “voz calorosa” se tenha apagado: “Era uma pessoa que não media as palavras, e isso era uma qualidade. Dizia o que tinha a dizer, sem contempori­zações.” Na entrevista que Suzana publicou, Fernanda conta que os pais e os avós eram músicos e que sonhou com o palco da ópera. Mas não foi esse o lugar que escolheu: “O teatro para mim é deixar de ser eu e o prazer de criar coisas novas no palco. Adoro os ensaios, a construção, o trabalho. Ser atriz é um ato de generosida­de.”

“Nunca trabalhei com ela mas fui um espectador espantado”, confessa Tiago Rodrigues, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. Falou ontem com o DN após uma reunião com várias pessoas que trabalhara­m com Fernanda Borsatti ao longo Tinha um olhar expressivo, num rosto fora dos cânones da beleza. Na foto, Fernanda na juventude Com Maria do Céu Guerra em Residencia­l Tejo, em 1999 dos 23 anos em que ela fez parte da companhia. “É uma atriz icónica desta casa, as pessoas têm imensas histórias com ela, foi um dia muito emocionado.” Foi em O Cerco de Leninegrad­o, de Sanchis Sinisterra, encenado por Joaquim Benite no Teatro de Almada (1998), que Tiago Rodrigues gostou mais de vê-la.

Herman José destaca uma mulher que “vivia dentro do seu mundo e tinha uma barreira em volta dela que poucos conseguiam passar, uma pessoa muito crítica, atriz admirável que fazia parte do meu imaginário de infância, adorava vê-la nas peças da RTP”. Convidou-a em vão para fazer parte de O Tal Canal.

O Presidente da República enviou condolênci­as à família de Fernanda Borsatti, num documento em que afirma que a sua “personalid­ade artística empática, afirmativa, efervescen­te, fica na nossa memória”. O ministro da Cultura lamentou a perda desta “atriz inconfundí­vel, que sempre se destacou pela versatilid­ade e que deixou uma marca pessoal na arte de representa­r”.

Fernanda Borsatti nasceu em Évora em 1931 e fez em Lisboa o curso de teatro do Conservató­rio. Passou por várias companhias, incluindo as de Laura Alves e de Raul Solnado, bem como a Casa da Comédia, o Maria Matos e o Maria Vitória. De 1978 a 2011, fez parte da companhia do TNDMII. Em cinema, trabalhou com realizador­es como José Fonseca e Costa, Luís Galvão Teles, Artur Semedo e João Botelho. Em televisão, participou em dezenas de peças – começou em 1957 com Falar Verdade a Mentir (Almeida Garrett) e depois em programas e séries como Eu Show Nico, Badarosíss­imo, Residencia­l Tejo, Inspetor Max e A Vida Privada de Salazar. Foi casada com o ator Armando Cortez, com quem teve um filho.

O corpo de Fernanda Borsatti estará em câmara ardente a partir das 17.00 na Igreja de São João de Deus, na Praça de Londres, em Lisboa. Amanhã, haverá missa de corpo presente às 10.00 e o funeral sairá às 12.00 para o Cemitério dos Olivais.

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