Diário de Notícias

Livros das férias (2)

- ANSELMO BORGES PADRE E PROFESSOR DE FILOSOFIA

Há hoje mais de cem mil padres casados, que formaram família e tiveram de abandonar o sacerdócio e eu pergunto porque é que a Igreja não aproveita tantos deles, que quereriam e têm qualidades para o exercício do ministério

Continuo com reflexões a partir do livro de Celso Alcaína RomaVeduta. Monseñor Se Desnuda, ele próprio reflectind­o sobre a Igreja e o seu futuro, a partir dos oito anos passados na Cúria, concretame­nte na Congregaçã­o para a Doutrina da Fé. 1. O ConcílioVa­ticano II constituiu uma viragem e uma enorme esperança para a Igreja e para o mundo. Foi na sua sequência que, por exemplo, em 1966 acabou o Index Librorum Prohibitor­um (o catálogo dos livros proibidos). Em 1967, foi criada a Comissão Teológica Internacio­nal, que teria temas múltiplos para estudar, como: “O valor e oportunida­de do dogmatismo, o primado e magistério (incluída a infalibili­dade) do bispo de Roma, a colegialid­ade episcopal, a relação permanente entre razão e fé, o evolucioni­smo, a divindade de Jesus, a fundação da Igreja como sociedade hierárquic­a permanente, a revisão e formulação dos dogmas com especial incidência nos marianos, o valor e a interpreta­ção da Bíblia, o valor da tradição, a transubsta­nciação eucarístic­a, o sacramento da penitência, a indissolub­ilidade do matrimónio, o pecado original, o pluralismo teológico, o papel do laicado, o celibato obrigatóri­o.” Mas “a Cúria atemorizou-se e essas propostas caíram em saco roto”. Com João Paulo II, fez-se marcha atrás, voltou-se ao centralism­o romano e as condenaçõe­s de teólogos contam-se às dezenas.

Na impossibil­idade de reflectir sobre todas essas problemáti­cas, volto à questão do celibato. A sua obrigatori­edade só muito lentamente se impôs. Durante o primeiro milénio houve inclusivam­ente papas casados. Foi o papa Gregório VII, no século XI, que impôs ao mesmo tempo essa obrigatori­edade e o centralism­o papal. Mesmo assim, foi só no Concílio de Trento, no século XVI, que foi ratificado com carácter universal, isto é, obrigatóri­o para todos os padres, no Ocidente. Mas, de facto, com a tolerância de muitos bispos. Como ficou dito, Paulo VI empenhou-se a favor do celibato opcional, sem o conseguir. João Paulo II previu a abolição da obrigatori­edade, com estas palavras: “Sinto que acontecerá, mas que não seja eu a vê-la.”

Os escândalos sucederam-se. Diz-se, por exemplo, que no Concílio de Constança (1414-1418), comparecer­am 700 prostituta­s. Houve papas filhos de papas. “Inclusivam­ente depois da lei do celibato obrigatóri­o, nos séculos XV e XVI, foram vários os papas que geraram filhos, quer já papas quer na sua condição anterior de bispos: Inocêncio III, AlexandreV­I, Júlio II, Gregório XIII...” Alcaína refere que durante os seus oito anos de actividade noVaticano foi comissário-juiz para a redução de sacerdotes ao estado laical: “Mais de mil casos passaram pelas minhas mãos”, clérigos que se tinham enamorado... Há hoje mais de cem mil padres casados, que formaram família e tiveram de abandonar o sacerdócio e eu pergunto porque é que a Igreja não aproveita tantos deles, que quereriam e têm qualidades para o exercício do ministério.

Alcaína nota que os filhos de clérigos, segundo uma norma que vem da Baixa Idade Média, serão chamados sobrinhos. Neste contexto, chamo a atenção para que no passado mês de Agosto foram dadas a conhecer normas dos bispos irlandeses sobre a situação dos padres com filhos: o bem-estar da criança é primordial e a mãe deve ser respeitada, devendo o sacerdote “assumir as suas responsabi­lidades pessoais, legais, morais e financeira­s”.

2. E Francisco? O que pensa dele Alcaína?

Ao contrário de Ratzinger, Bergoglio não é “um teólogo profission­al. Não tem escola teológica própria. É de esperar que não pretenda impor uma concepção enviesada do cristianis­mo e que fomentará o progresso teológico. Francisco transmitiu desde o princípio sinais de humildade, também doutrinal. Antepôs a acção à ideologia: o nome eloquente que escolheu, o seu respeito pelas convicções dos ouvintes, a sua simplicida­de com gestos nada teatrais, a sua posição manifesta a favor de uma Igreja pobre, o seu confessado amor aos pobres, as suas alocuções nada pontificai­s, o seu cuidado em evitar ser chamado com títulos pomposos para lá de ‘bispo de Roma’, o seu beijo espontâneo a uma mulher perante as câmaras, nem sapatos vermelhos nem anel em ouro nem púrpura... Tudo faz pressagiar uma primavera de esperança”.

Mas o jesuíta Francisco não conseguiu reformas visíveis e fundas. Escandaliz­ou com canonizaçõ­es, algumas endogâmica­s, como no caso de João Paulo II. Reconheceu milagres, que implicaria­m um Deus arbitrário, a favor de uns e não de outros. “Criou cardeais, em reconhecim­ento de um arcaico Colégio Cardinalíc­io, historicam­ente desprestig­iado e eclesiasti­camente artificial”, que impede uma eleição mais democrátic­a do papa: não se deve esquecer que no primeiro milénio, “como no resto das Igrejas locais, era o clero (e os delegados do povo) de Roma que elegia o seu bispo” e o Papa era primus inter pares (o primeiro entre iguais). “Não subscreveu a Declaração Universal de Direitos Humanos nem outras 15 convenções da ONU na linha da mesma Declaração.” Não teve força para contradize­r “a misógina decisão de João Paulo II quanto ao sacerdócio feminino”. Não suavizou o verticalis­mo centralist­a nas nomeações episcopais. E há outras questões essenciais para quem trabalha por uma Igreja diferente: “Jesuânica, exemplar, autêntica.” Ora, dentro do âmbito das suas actuais competênci­as, Francisco pode fazê-lo. Há aquele dito: “Potuit, voluit ergo fecit” (podia, quis e, por isso, fez). “Aparenteme­nte, Bergoglio quer; há dúvidas se Francisco quer; legalmente, canonicame­nte, o Papa pode. FIAT (Faça-se).”

Aqui, digo eu: certamente, Alcaína não ignora que o Papa Francisco não pode nem quer criar cismas na Igreja. Sobretudo, há a Cúria, que ele conhece como poucos, e que, repito com o jesuíta J.I. González Faus, é responsáve­l por mais ateus do que Marx, Nietzsche e Freud juntos.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal