Diário de Notícias

Se é homem ou mulher não importa. É Lear. E tem Entrada Livre

O Teatro Nacional D. Maria II apresenta a peça de Shakespear­e com Paula Só a fazer de Lear. Neste fim de semana é grátis.

- Maria João Caetano POR

Lear é pai e mãe, é rei e rainha. “É uma figura maior do que o homem”, diz o encenador Bruno Bravo. Foi a partir dessa ideia que começou a trabalhar na peça de William Shakespear­e tendo como intérprete uma atriz: Paula Só é Lear no palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Pequena, pequena demais para o enorme trono onde está sentada logo no início do espetáculo, pequena demais para o enorme cavalo que só consegue montar e desmontar com a ajuda de alguém. Pequena como pequeno se sente Lear no momento em que tira a coroa e a entrega às suas filhas. Pequeno como qualquer homem.

O espetáculo chegou a ser anunciado como o regresso de Eunice Muñoz àquele palco mas depois de alguns meses a trabalhar com a companhia Primeiros Sintomas a atriz de 87 anos acabou por afastar-se por motivos de saúde. Entrou então em cena Paula Só, uma atriz versátil e com uma longa carreira, que muitos conhecerão dos espetáculo­s de O Bando ou dos muitos papéis que já fez em televisão. “Sei que não sou uma atriz muito mediática, não me reconhecem na rua”, admite Paula Só, que ainda está a aprender a lidar com o facto de ter o seu rosto no cartaz na fachada do teatro.

“Desde o início tínhamos esta ideia de ter uma mulher a interpreta­r o Lear, o género não seria determinan­te para o que queríamos fazer”, explica o encenador. “O Lear pode ser entendido como uma espécie de signo maior do que o homem ou a mulher. Tem traços masculinos e femininos, como todas as pessoas. Ao mesmo tempo ele é também primeiro homem branco, como dizia o Harold Bloom. E é interessan­te ver uma atriz a dizer palavras que podem ser entendidas como misóginas ou de algum machismo. Essa complexida­de interessou-nos.”

Para a atriz fazer um papel masculino não representa qualquer di- ficuldade acrescida. Ainda há pouco tempo foi Ofélia, uma personagem de 20 anos, num Macbeth feito só com mulheres e encenação de Hugo Franco. É isto ser atriz. “Gosto de me transpor e saber como o outro se sente. Não importa que seja um homem ou uma mulher. O público vai esquecer-se de que é uma mulher”, acredita. “O Lear em toda a sua longa vida passou por todo o tipo de sentimento­s maus e bons por que o ser humano pode passar. Desde a cegueira pelo seu poder e pelo seu estatuto, incluindo um que eu acho dos mais terríveis e mais nobres, que é o remorso”, explica. “Ele foi tão ingénuo, foi cometer um ato tão incauto como tirar a coroa e passá-la às filhas, a partir daí não é mais do que um velho doente e débil e ainda por cima desamado.”

Perante um texto “muitíssimo complexo”, Bruno Bravo optou por não fazer o texto completo mas uma adaptação (a tradução é de João Paulo Esteves da Silva). A intenção, diz, “foi iluminar uma parte do Lear” e centrar o espetáculo em duas narrativas paralelas que acabam por se fundir, sempre em torno da ideia de poder e família: a relação de Lear com as três filhas e ainda a família Gloucester. Focou-se nessa ideia de que “de um momento para o outro se pode perder tudo” (“o que temos por garantido, o que é um homem quando não tem nada?”) mas também na família como “núcleo de grande violência” e na questão política “sobre a ideia de verdade”. “A Cordélia é a única filha que diz a verdade e é desajustad­a. Esta peça é muito pessimista porque nos diz que a ver- dade não é possível, não podemos dizer o que nos vem à cabeça.”

“É um texto que tem tudo”, afirma o encenador. “O Lear começa como rei, algo maior do que o homem. Abdica do trono e perde tudo. Torna-se então homem num sentido plural, ou seja, humano. A loucura do Lear, que eu nunca vi como loucura demencial, é um paradoxo pois a loucura aproxima-o da verdade.”

A peça foi escrita no início do século XVII, mas a ação passa-se algures entre os séculos XI e XII, naquilo a que poderíamos chamar o início da Europa. No palco, domina uma ideia de despojamen­to. “Tentámos jogar com uma ideia de vazio, onde há alguns objetos que remetem para essa ideia de poder.” Objetos como o trono, o cavalo e a coroa – a mesma usada por Ruy de Carvalho quando interpreto­u Rei Lear, naquele palco, em 1998.

Com música de Sérgio Delgado e cenários de Stéphane Alberto, o espetáculo conta ainda com as participaç­ões de Ana Brandão, António Mortágua, Carla Galvão, Carolina Salles, Joana Campos, João Pedro Dantas, José Redondo e Miguel Sopas.

Depois deste fim de semana de “Entrada Livre”, que marca o início da nova temporada Teatro Nacional D. Maria II (programa ao lado), o espetáculo ficará em cena até 15 de outubro.

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Paula Só é Lear. Para a atriz fazer um papel masculino não teve dificuldad­e acrescida

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