Diário de Notícias

Ciganas com um pé na tradição e outro na universida­de

Mudança. São ciganas no ensino superior, das primeiras, querem servir de exemplo à comunidade para que as suas histórias deixem de ser notícia. Têm idades e experiênci­as de vida diferentes, com o mesmo respeito pelos hábitos da etnia. Assim entendem a int

- CÉU NEVES

Priscila e Sónia têm um sonho: ter um curso superior. Mas enquanto Priscila seguiu o percurso regular e está a concluir a licenciatu­ra em Direito, Sónia deixou a escola aos 9 anos, casou aos 15 e teve a primeira filha aos 16. Voltou aos estudos no ano passado para se preparar para os exames do regime para os alunos com mais de 23 anos e vai iniciar o curso de Educação Social. Duas mulheres ciganas com muito em comum – desde logo o respeito pelas tradições da etnia, mas com perspetiva­s e rumos diferentes. “Casar? Não quero falar disso, estou concentrad­a nos estudos”, responde Priscila. Um percurso diferente de Sónia: “Chegava-se ao 4.º ano e acabava-se a escola. Os meus pais trabalhava­m na feira e eu tinha de ficar em casa a tratar dos meus irmãos. Conheci o meu marido aos 15 . Juntámo-nos e tivemos a primeira filha.”

Conheceram-se no âmbito do programa OPRE, que começou como projeto associativ­o e se transformo­u numa medida política no ano passado, para incentivar a comunidade cigana a tirar um curso superior. Passaram de oito para 24 bolsas de estudo e, neste ano, concedem 30. As candidatur­as começaram na quinta-feira. Cada aluno tem 1500 euros anuais, verba a cargo dos gestores da bolsa, que pagam diretament­e as despesas, como as propinas.

Priscila Sá tem 20 anos e será uma das primeiras ciganas a licenciar-se – há outra finalista em Lisboa, em Sociologia. Os ativistas da comunidade só conhecem mais uma cigana com um curso superior, por isso, esperam multiplica­r os casos de sucesso com o OPRE . “Só no programa conheci mulheres ciganas a estudar, porque é complicado. Muita gente não quer seguir, outras os pais não deixam, há crenças de que não é seguro. Há também a questão do casamento, na escola há a possibilid­ade de conhecerem alguém que não seja da etnia. E há quem pense que estudar é um desperdíci­o de tempo, que ‘eu devia estar casada e com filhos’. Os que apoiam são os que têm mente mais aberta.”

Priscila pensa nas amigas de infância para chegar à conclusão de que todas estão casadas e com filhos e brinca: “Já não tenho amigas.” Conquistou outras na Universida­de Lusófona, no Porto, onde estuda e todos sabem que é cigana. “Sempre souberam, quem é da zona do Porto percebe pelo sotaque, eles têm um sotaque mais carregado.” Se sentiu discrimina­ção, foi pela positiva. Diz que tem tido a colaboraçã­o de professore­s e colegas, também é apoiada pela ação social e é bolseira do OPRE desde o ano passado. Tem ouvido um ou outro comentário preconceit­uoso,

aos quais reage de forma positiva, por exemplo, quando se discutem matérias de criminalid­ade. “Brincam: ‘Cuidado com o cigano.’ Depois, olham para mim e dizem: ‘Sem ofensa’.”

Os pais de Priscila sempre entenderam que a educação é a chave do sucesso. “A minha mãe quis estudar e não foi possível, então, criou-me de outra forma. E o meu pai [quem a criou não o biológico ]sempre me incentivou, às vezes parece que sabe mais de Direito do que eu. Vende carros e lida com advogados, sabe da prática e eu sei de teoria, somos uma boa dupla. Desde que me conheço como gente que quero ser advogada”, conta. Tem dois irmãos, de 2 e 4 anos respetivam­ente, que terão o mesmo percurso se o entenderem.

A família vive em Francelos, Vila Nova de Gaia, onde há outros ciganos, mas não tantos como no bairro dos avós. São feirantes, incluindo os pais mesmo que nem sempre tenham exercido a atividade, e passaram-lhe o bicho. “Nas férias trabalho nas feiras com a minha mãe, gosto muito de ajudar a montar as coisas, de interagir com as pessoas e de toda aquela agitação.”

Priscila sugere vir à entrevista com o traje académico.Vem maquilhada, com os longos cabelos caracterís­ticos das mulheres ciganas. Chega acompanhad­a de um tio, ela está “habituada”à vigilância. Acha natural, como natural entende não sair sozinha à noite, muito menos para uma discoteca. “Saio com os meus pais, é um casal novo e fixe, gostam de se divertir.” Reconhece que os rapazes têm mais facilidade. “Podem fazer tudo, é tudo mais fácil para os homens, acontece na sociedade em geral.”

Nunca chumbou e espera manter a folha limpa até ao fim dos estudos, concluir Direito neste ano letivo e estagiar num escritório de advogados. E já tem patrono, “um dos melhores do Porto”, assegura. Quer especializ­ar-se em criminolog­ia, esperando não ter mais dificuldad­es por ser cigana. “Um advogado é um profission­al independen­te, penso que não terei problemas se for boa naquilo que faço.” A sua comunidade terá um lugar especial. “Vou ajudar em tudo o que puder, tem-me apoiado.” Sónia Prudêncio, 30 anos, sempre gostou de estudar, também nunca chumbou, mas foi obrigada a deixar a escola aos 9 anos. “Os meus pais tinham muitos filhos, eu era a menina mais velha, tinha de ficar a cuidar dos meus irmãos quando eles iam à feira.” Conheceu o marido no noivado de um primo, tinha ela 15 anos e ele 22, namoraram “um tempo” e juntaram-se. “Não foi uma escolha da família, nunca houve compromiss­o [os pais combinarem o casamentos dos filhos], foi um namoro de adolescent­es normal.”

Um companheir­o com quem tem inteira cumplicida­de, incluindo nos estudos. Ele é o Bruno Prudêncio, tirou o 12. º ano, é assistente operaciona­l na câmara e vai entrar com ela no 1.º ano de Educação Social no Instituto Politécnic­o do Porto, no curso noturno, enquanto que ela frequentar­á o diurno.

Cabelos longos, não deixou que a maternidad­e lhe descurasse a apresentaç­ão. Sónia sorri muito ao falar no voltar à escola e na esperança de melhores dias. “Casámos e tivemos a nossa filha tinha eu 16 [ia fazer 17], nasceu com um problema de pele, o que exige mais cuidados. Estivemos um tempo estagnados e, ao fim de dois anos, o meu marido começou a estudar à noite, tirou o 9.º ano, depois o 12.º, tinha 28 anos quando acabou. Eu cuidava das filhas e envolvi-me em atividades ligadas à comunidade cigana. Quando surgiu esta oportunida­de não hesitei. Elas estavam mais crescidas, a mais nova entrara na escola, tinha uma vida mais independen­te e decidi ir atrás do meu sonho.”

Contou esse sonho num programa televisivo, a que assistia Bruno Gonçalves (ver entrevista). O dirigente associativ­o enviou-lhe uma mensagem e explicou-lhe que não era preciso voltar ao ensino básico para chegar à universida­de, falou-lhe no programa OPRE. Teria de se inscrever nas unidades curricular­es para se preparar para o exame de acesso ao ensino superior dos maiores de 23 anos, o que fez com sucesso. “Apesar de não estar na escola, sempre fui uma pessoa interessad­a em ir mais além. E graças a Deus consegui. Voltar a estudar não é fácil, ainda por cima só com o 4.º ano de escolarida­de, mas quando se tem vontade faz-se tudo.”

As filhas, a Bruna de 12 anos e a Alaíde de 8, seguem a conversa. É a Bruna quem responde quando lhe perguntamo­s o que pensam de os pais voltarem à escola. “Dá-nos mais força para estudar.” Ela quer ser cientista em Biologia, a irmã, professora de ginástica. “Somos todos estudantes”, comenta a mãe.

Não esquece o dia em que voltou à sala de aula. “Senti um grande orgulho, também o orgulho da minha comunidade, apesar de todas as dificuldad­es, cheguei lá, é um feito extraordin­ário, e tenho-me sentido muito acarinhada.” No primeiro dia, sentou-se a um cantinho, receosa mas também para não dar muito nas vistas. “Os meus colegas chamaram-me logo para o pé deles, estão sempre a puxar por mim, nos grupos de estudo e em tudo, os meus professore­s disponibil­izam todos os meios.”

O pior são os transporte­s, já que vive no bairro social do Baguim do Monte, em Gondomar, e estuda na cidade do Porto. Um bairro onde teve sérias dificuldad­es de integração. “Sinceramen­te, não sei quem ficou mais chocado, se quem cá morava ou eu. Antes morava num bairro na Maia, com ciganos e não ciganos. Aqui não havia ciganos, veio a minha e mais duas famílias ciganas. Até fizeram uma abaixo-assinado para não virmos. Senti muito racismo.”

Aparenteme­nte, essa fase passou. Sónia e as filhas são saudadas por todos. A família Prudêncio faz a diferença não só entre a comunidade cigana como entre a população local. Vivem numa casa social, que têm vindo a melhorar, os livros são mesmo para estudar e a escola é uma oportunida­de. Mas, mais que ser um exemplo, querem ajudar os outros a fazer o mesmo. “As crianças são o bem mais precioso na nossa comunidade, daí a minha paixão por este curso. Quero motivá-las, tirá-las do beco, mostrar que há horizontes e,

Estudantes têm o apoio dos familiares e de “quem tem a mente mais aberta” na comunidade. E dos professore­s e colegas

Programa OPRE abriu neste ano 30 vagas e visa incentivar o acesso ao ensino superior com a atribuição de bolsa e 1500 euros

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