Diário de Notícias

A minha casa, a nossa casa

- ANA SOUSA DIAS

Marina senta-se à nossa mesa quando lhe pedimos a conta. Não sabemos ainda como se chama mas já nos conhecemos de uma ou duas idas ao restaurant­e. “Isto não tem nada a ver com o jantar nem com a conta, mas tenho de dizer isto. Consegui alugar uma casa em Lisboa.”

Esta história pode ser o lado A do disco que tem no lado B os 20% de jovens dos 15 aos 29 anos que nem estudam nem trabalham. Marina veio do Porto para Lisboa porque quer ser humorista, e é evidente, pela forma como faz do trabalho no restaurant­e uma aventura, que dará tudo por tudo para consegui-lo. Já tinha reparado nela na ida anterior, não só por ser tão bonita mas também por ser muito mais do que alguém que toma nota dos pedidos e deposita os pratos na mesa. Ela põe em tudo isso uma energia radiosa.

Hoje está feliz porque arranjou uma casa e tem de contar. Partilhava um apartament­o com três amigos e foram despejados de repente. Não tinham contrato. Começou aí uma corrida contra o tempo. Conta Marina que viram todos os anúncios, telefonara­m sem parar, viram casas em condições tão horríveis que as pessoas deviam ter vergonha. Conta também que receberam recusas sucessivas, desde logo por serem jovens; ou por não serem uma família; ou por serem trabalhado­res e não estudantes. Alto lá, mulher, essa não percebemos.

Continuamo­s sem perceber mas ela já passou a outro capítulo: os preços. É mais do mesmo, porque foram despejados porque a anterior senhoria arrendou (ou será que vendeu? não me lembro) a outros por um preço indecente. Depois perderam outra quase-quase assegurada, porque à última hora apareceu uma família e ganhou.

Nessa altura já nos tínhamos esquecido de que faltava a conta, mergulhado­s na saga do grupo de jovens trabalhado­res à procura de uma casa para partilhar em Lisboa. Marina sabe contá-la, e sabe também que prendeu a atenção do (pequeno) público. Está a dizer que não percebe porque é que as pessoas tentam cortar as asas aos jovens que têm sonhos e objetivos, que dão o litro mas que a cada passo deparam com mais obstáculos. Ela acha que os mais velhos deviam gostar de ver o esforço dos mais novos. Todos concordamo­s.

E então aparece a casa. A CASA. Quatro quartos, um para cada um, um preço acessível, uns senhorios supersimpá­ticos, amor à primeira vista, um contrato. Uma localizaçã­o que dá para apanhar autocarro direto para o trabalho, o que é fundamenta­l porque Marina não tem carro. Ainda assim, à noite já não há autocarros, ou são raros, mas um colega dá boleia sempre que pode. Por ironia, A CASA é muito perto daquela de onde têm de sair e, reforçando a ironia, é muito melhor. Marina conta que ela e os amigos foram logo anunciar a boa nova aos vizinhos das lojas e restaurant­es e foi uma festa. É fácil imaginar a cena. Nós próprios já estamos com vontade de bater palmas e de abraçá-la.

Houve um tempo antigo, quando os discos tinham lado A e lado B, em que os jovens só saíam de casa dos pais para se casar ou para estudar longe. Adultos a partilhar casas com amigos e a dividir a renda é hoje normal, e não tem a carga penosa daquela prática triste da divisão da habitação por várias famílias que era habitual há algumas décadas, coisa de uma sociedade onde ser “remediado” era um degrau acima da miséria. Esta é uma reação à – chamemos-lhe assim, para facilitar – crise que, como é da praxe, tem algumas vantagens. Por exemplo: 1) levar as pessoas a perceber que não é mais fácil ser professor do que humorista e que se querem ser humoristas então bora lá; 2) levar as pessoas a procurar soluções sem dependerem da ajuda dos pais; 3) levar as pessoas a partilhar modos de vida, horários de uso da casa de banho e da cozinha, limpezas, arrumações, detergente­s, eletrodomé­sticos se der para isso, enquanto organizam a sua vida e depois logo se vê que novas soluções constroem. E por aí fora, que isto tem muito que se lhe diga e com certeza já há estudos de sociólogos, antropólog­os e psicólogos sobre o assunto.

E depois há o lado B, porque nem tudo se conjuga como devia ser.

Hoje está feliz porque arranjou uma casa e tem de contar. Partilhava um apartament­o com três amigos e foram despejados de repente Conta Marina que viram todos os anúncios, telefonara­m sem parar, viram casas em condições tão horríveis que as pessoas deviam ter vergonha Adultos a partilhar casas com amigos e a dividir a renda é hoje normal, e não tem a carga penosa daquela prática triste da divisão da habitação por várias famílias

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