Diário de Notícias

“Andei com a bandeira de Portugal às costas. Sabia que havia de chegar a nossa altura nos vinhos”

- JOANA PETIZ

Eu gosto muito de trabalhar em vinho, mas é quase preciso esquecer os números do gestor, tem de se partir do princípio que se fizermos bem os números vêm

O preço das uvas subiu 30%, o produtor começa a ganhar dinheiro – o que é bom, mas ainda não se vê essa subida nas prateleira­s

Oregresso ao Gambrinus, onde João Portugal Ramos é presença assídua desde os tempos em que o pai ali o levava e onde conhece todos os empregados pelo nome, não podia ser mais bem escolhido para um almoço que também é de certa forma uma celebração. E talvez por isso mesmo, ao contrário do que é marca desta rubrica, desta vez sou obrigada a aceitar que seja João a encarregar-se da conta. O almoço ficará por ele e não há mais discussão.

O produtor responsáve­l pela criação de vinhos como Marquês de Borba, Duorum, Estremus ou Alvarinho, e que acaba de adicionar ao portfólio a histórica aguardente CRF, tem bons motivos para festejar. No ano em que arranca com a 37.ª colheita, está a cumprir um quarto de século da JP Ramos, uma década da fundação da Duorum, tem dois dos cinco filhos (de 41, 27, 26, 21 e 14 anos) a trabalhar com ele e até ao final do ano estarão prontas as obras de modernizaç­ão de toda a estrutura de engarrafam­ento em Estremoz e a reorganiza­ção do grupo, que foi crescendo sempre.

“Era uma reorganiza­ção necessária”, que também levou a repensar a adega e se desenrolou ao longo de três anos – passou por melhorar o frio, fazer mudanças a nível ambiental e energético, construir uma cobertura que pode ser ajardinada, modernizar o bloco de engarrafam­ento, enfim, tornar mais eficiente uma estrutura que já depende de 140 pessoas. Um projeto a rondar os cinco milhões de euros que é apenas parte de um investimen­to contínuo. “Quando comecei não tinha um tostão. Fiz tudo com crédito bancário – fui sempre muito apoiado pelos bancos portuguese­s. Nunca parámos de investir, as sociedades nunca deram dividendos porque a dinâmica deste negócio requer investimen­to. Daqui a dez anos talvez possamos começar a dar.” Essa constante insatisfaç­ão e subsequent­e desejo de dar sempre mais tem levado a JP Ramos a lançar vinhos de grande qualidade com uma frequência invejável. Neste ano, volta a haver novidades: o Alvarinho Reserva, o primeiro espumante verde de Alvarinho, é uma delas.

“Fizemos muito em 25 anos, mas as coisas foram acontecend­o – só nos últimos dez, houve o Duorum, arrancámos com osVerdes em Monção, comprámos a CRF, há aquela brincadeir­a dos azeites e vinagres. Por isso foi muita coisa atirada para o saco e agora é preciso organizar, reformular.” Esse é, assume, na mesa ao canto da sala onde vamos petiscando as finíssimas fatias de pão torrado ali preparadas como em nenhum outro restaurant­e da cidade, o objetivo para os próximos anos: centraliza­r serviços e organizar as sociedades, agora que sabe que tem quem lhes dará continuida­de. Numa empresa que vive com as contingênc­ias próprias de um negócio que vive da agricultur­a – com todas as dificuldad­es e imponderáv­eis de estar dependente dos caprichos da natureza –, houve uma altura em que João vacilou. Foram muitas as propostas recebidas para lhe tirar a JP Ramos das mãos, algumas bem generosas e permitindo-lhe manter-se na gestão durante largos anos, com os bolsos cheios e a tranquilid­ade de quem não tem de pensar em financiame­nto, números, organizaçã­o. “Mas os miúdos viram isto desde que nasceram, cresceram com isto e custava-me tirar-lhes a possibilid­ade de continuar.” E ainda que tenha chegado a pensar prós e contras – “isto é muito bonito, mas eu montei a primeira vinha em 1989 e antes disso nem um metro quadrado tinha... foi difícil” – não se enganou na decisão, como comprova a chegada da nova geração ao negócio.

Está escolhido o vinho para o almoço: à falta do esgotado Marquês de Borba, que é quase o vinho da casa, ali no Gambrinus, o Alvarinho que liga na perfeição com o meu empadão de lagosta e os filetes (que à última hora ganharam às iscas). E também não destoa das gambas à Malaguenha que partilhamo­s para entrada.

João Portugal Ramos vai desfiando a história que o levou ali, ao momento em que acaba de fazer uma grande festa na Cidadela de Cascais para celebrar entre amigos um percurso rico em boas apostas, que começou com a sociedade constituíd­a em 1992. “Tinha 36 anos quando fiz a primeira vinha, à volta de casa. Mas sempre tive veia para os vinhos.” Nascido entre seis irmãos, numa família de artistas – o que levou o crítico de vinhos José Salvador a chamar-lhe o arquiteto dos vinhos –, sempre teve um gosto especial pela terra e em época de vindimas passava grandes temporadas em casa da avó materna, que era produtora. A chegada do 25 de Abril e a consequent­e venda da quinta da família foi um marco. Convidado para se juntar, como enólogo, à Cooperativ­a da Vidigueira, decidiu trocar Lisboa pelo Alentejo e em 1980 fazia a sua primeira vindima. Quatro anos mais tarde, lançava o primeiro vinho da nova era.

“Sempre adorei o Alentejo. Era lá que acompanhav­a o meu pai na caça de perdizes, conhecia bem as terras e tem muita qualidade de vida a uma hora e pouco de Lisboa. Foi um acaso ter ido para lá, mas cheguei ao sítio certo na hora certa.” Claro que nem sempre foi simples. “Lembro-me de andar com caixas de vinho no carro – nessa altura eram grades, ainda –, chegar aos restaurant­es em Lisboa e pedir a carta de vinhos: ‘Então não tem alentejano­s?’ E deixava garrafas para eles experiment­arem. O Alentejo tinha 2% de quota de mercado – hoje tem mais de 40%.” E ainda que ele próprio não o diga, a verdade é que João, entre os 17 anos passados em cooperativ­as e o trabalho em nome próprio, desempenho­u um papel fundamenta­l na mudança dessa proporção.

Guarda boas recordaçõe­s desse tempo, diz que as cooperativ­as tiveram um papel fundamenta­l na sua carreira. E lamenta vê-las cometer erros que podem trazer-lhes dificuldad­es. “Antes, uma pessoa que vendesse uva a uma cooperativ­a do Alentejo sentia-se segura porque escoava o produto e sabia que era mais bem remunerada. Hoje o privado paga bem melhor...” Ainda assim, diz que o país tem uma qualidade média no vinho que é muito acima da fasquia e isso começa a dar sinais de aumento dos preços. “Este ano talvez seja o mais marcante nisso: as uvas subiram 30%. O produtor começa a ganhar dinheiro – o que é bom, para tratar bem a vinha e isso se refletir na qualidade e no preço do vinho. Mas esse aumento ainda não chegou às prateleira­s das lojas.”

Enquanto vamos limpando a frigideira das gambas e do delicioso molho apimentado, reconhece que, se encontra diferenças entre os tempos em que começou e a atualidade, também vê melhorias. “Passados 30 anos, nascem adegas como cogumelos, especialme­nte no Alentejo. Lembro-me do tempo em que fiz uma prova cega e identifiqu­ei as sete regiões e as diferentes marcas que me puseram à frente. Os produtores eram tão poucos que fui por exclusão de partes. Hoje faz-se tantos vinhos diferentes que seria impossível.” Ele próprio já exporta mais de 60% do que produz, ainda que admita que falta ultrapassa­r uma fronteira para os vinhos portuguese­s realmente explodirem lá fora. “O nosso vinho está conotado com o baixo preço e as pessoas, à exceção dos grandes conhecedor­es, não estão preparadas para os pagar caros. E aqui o turismo pode ajudar muito, porque o mercado está a consolidar-se, já não temos só os estrangeir­os da cerveja e do jarro de vinho, começa a chegar turismo de qualidade, temos gente a vir viver para cá, e isso vai ajudar, a par do aumento de consumo interno, que já se sente, por haver mais confiança na economia.”

Recordando os tempos em que “andava com a bandeira de Portugal às costas e sabia que havia de chegar a nossa altura”, João reconhece que essa mudança está mais perto do que nunca. E nela o mercado dos Estados Unidos será extremamen­te importante. Assim se altere a perceção dos nossos vinhos, que chegam a ser vendidos em packs de três por 9,99 dólares. “Ainda há um caminho”, reconhece, e que na sua ideia devia ser percorrido de forma diferente. “A divisão por comissões vitiviníco­las para promover os vinhos portuguese­s não faz sentido. Devíamos seguir o exemplo do Chile e criar uma marcaVinho­s de Portugal, sem divisão, centraliza­ndo os parcos recursos de todos esses organismos sob um chapéu único.”

A parte mais difícil, porém, é a enorme concorrênc­ia. “Há uma atração especial neste setor e agora começam a aparecer pessoas que vêm pelos resultados, investidor­es que estão aqui como podiam estar no tomate ou na tecnologia. Há mais investidor­es do que conhecedor­es, que fazem o Excel e seguem o processo ao contrário do que de-

via ser”, lamenta. A maneira de trabalhar de João é a inversa: “Eu gosto muito de trabalhar em vinhos, mas é quase preciso esquecer os números do economista e simplesmen­te partir do princípio de que, se fizer bem, os números aparecem.” O que se traduz por pensar primeiro no produto, o negócio virá por acréscimo. Explica porque a JP Ramos mantém uma qualidade muito acima da média nos vários posicionam­entos de preço. “Eu bebo muito vinho à refeição e não me sentiria bem ao pôr à frente do cliente, seja a que preço for, um vinho com a minha chancela que não fosse bom. Do nosso portfólio, as dez a 15 referência­s de topo só as fazemos em anos excecionai­s. O Estremus vai para a terda ceira colheita – fizemo-lo em 2011, que foi um ano extraordin­ário, 2012 também foi excelente e 2014; o Marquês de Borba Reserva em 2011, 2012, 2014 e 2015; o topo de gama do Duorum, o O. Leucura, em 2008, 2011 e vai sair neste Natal o de 2012, que não chega a duas mil garrafas.”

O que acontece a essa seleção especial nos anos em que não atingem patamares de absoluta excelência?Vão pingando na referência de vinho abaixo, alimentand­o os padrões de qualidade. Mesmo porque para essas referência­s especiais há mais cuidado com a vinha – o que não significa demasiada intervençã­o mas “respeito pelo terroir, que é o que realmente faz um bom vinho, e respeito pela diferença que nasce na vinha”. E o custo da uva é superior. Passa de 0,5 para 1,5 euros, explica-me João Portugal Ramos, euro a mais que se reflete no mercado multiplica­do por quatro. “As grandes margens fazem-se aí. Num país em que 80% do vinho é vendido abaixo de 2,5 euros, um Estremus ou um Marquês de Borba Reserva custam 100. E não é fácil vender-se”, admite o produtor, especifica­ndo que as pequenas produções de vinhos caros saem bem, garrafas baratas, até 2,5 euros também, mas o que está entre essas duas fatias, que é onde se recolhe mais margem com volume, mas também onde há mais concorrênc­ia, é difícil de escoar.

O fantástico e levíssimo empadão de lagosta e os filetes aparecem a levar a conversa a outras paragens. Vêm acompanhad­os de uma salada verde que decerto ficaria melhor com o vinagre Oliveira Ramos a que João chama “uma brincadeir­a”, o único de colheita tardia no mercado há dez anos, envelhecid­o durante 12 em barricas de carvalho.

João viaja agora pelos anos de 1990, quando já emprestava a sua experiênci­a a mais de 25 empresas e tomou a decisão de mudar de vida. “Nessa altura eu era um enólogo independen­te e quando a AICEP começou a vender vinho português pelo mundo recorria a mim porque eu era apartidári­o. Mas começou a ser complicado: eu tinha mais de 20 avenças e diziam-me para levar oito vinhos ao Japão. Como é que escolhia entre os meus clientes? E ainda tinha o meu vinho, que levava sempre porque fazia questão de não fazer concorrênc­ia aqui em Portugal – é assim que nasce a marca própria Pingo Doce, foi a forma que encontrei de escoar o meu vinho sem concorrer com os clientes. Nessa altura tinha havido o boom do Alentejo, que passou de 10 mil para 20 mil hectares, e eu pensei que o futuro era ter um projeto meu, logo não fazia sentido continuar a viver de avenças; então fui preparando as coisas para sair, deixando enólogos residentes, treinando-os.” Em 2000, estava livre de avenças e totalmente dedicado à sua adega. Onde arrancara com seis hectares (ha) e aceitando receber as uvas de mais 45 ha – e encaixara 16 em vez das oito cubas de tinto previstas na aprovação do projeto porque logo percebeu que não chegaria –, na entrada do novo milénio eram nove mil metros quadrados e 300 hectares de vinha. “Nessa altura, como dizem os espanhóis, tiravam-me o vinho das mãos!”

Hoje, João tem o negócio repartido pelas três regiões vitiviníco­las mais importante­s: Douro,Verde e, claro, o Alentejo, onde tudo começou e continua ao leme, tendo passado para a filha Filipa parte da comunicaçã­o e marketing, incluindo a fatia do enoturismo. Na quinta, organiza provas com tapas, almoços e eventos que permitem aos curiosos contactar com o mundo vitiviníco­la e a gastronomi­a regional, sendo enólogo por um dia, juntando-se às vindimas, aprendendo a confeciona­r pratos regionais ou mesmo a fazer o seu próprio vinho. Programas que atraem sobretudo portuguese­s, mas que vão ganhando espaço e fãs entre brasileiro­s, americanos, ingleses, holandeses e alemães.

Quanto às outras duas regiões, João gere-as à distância – uma vez que está fixado em Estremoz – porque se ligou, em cada uma delas, a enólogos excecionai­s, desde o início. O negócio dosVerdes nasceu ideia de “uma menina nascida e criada em Monção, que está connosco há 15 anos e há uns cinco disse-me que gostava de entrar na produção. É a Antonina, cujo pai foi durante anos o líder da grande Cooperativ­a de Monção, que gere osVerdes”. Mais curiosa é a história do Duorum, que me relata depois de ceder à tentação de um abade de Priscos “para experiment­ar um excelente Madeira” a acompanhar.

Doce e cafés servidos, conta-me que é amigo de sempre do enólogo José Maria Soares Franco. “Conheci os avós dele a jogar bridge com os meus. Íamos a casa deles todos os domingos, a Sintra (é hoje a casa de D. Duarte), fomos para Agronomia e estagiámos juntos. Casámos ambos cedo e ele foi para o Porto e eu para o Alentejo, mas continuámo­s sempre amigos.” Foi num jantar a quatro que surgiu a ideia, “completame­nte por acaso”. “Em conversa, eu disse que me apetecia fazer um vintage Porto e um Douro e ele achou que era boa ideia juntarmo-nos – e saiu dali o embrião do Duorum.” Em terras do Douro Superior, até à fronteira de Espanha, onde chove quase tão pouco quanto no deserto do Sara, João orgulha-se de ter construído – à custa de “muito tempo e recursos financeiro­s” – um dos projetos mais bem feitos que conhece, incluindo pela preocupaçã­o ambiental e de harmonizaç­ão com a paisagem. “Não se vê nada, só natureza e uma pequena vila. É tudo muito bem feito.”

Já a chegar ao fim do nosso encontro, pergunto-lhe o que faz quando não está a pensar nos vinhos – e já adivinho, pela paixão que imprimiu durante todo o almoço ao que me contou do seu percurso, que será perda de tempo. Além da caça – “já vou gostando mais de ver os meus perdigotos crescer; para caçar, prefiro ir às perdizes noutro lado” – resta muito pouco. Fez este ano uma viagem sem ponto de ligação ao negócio, à Tanzânia. A primeira em 14 anos. “Os vinhos ocupam muito tempo, muito pensamento. Sobretudo nesta altura de arrumar a casa, cumprir esta passagem, fazer o puzzle. Sinto necessidad­e de ficar com menos coisas dependente­s de mim, para sair do pó do dia-a-dia e conseguir ver por cima, pensar a estratégia.” E tanto quanto se vê, está no bom caminho para consegui-lo.

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