Poder judicial
Se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX foi o século do poder executivo, o século XXI será o século do poder judicial. Eis uma frase que ouvimos com alguma regularidade ao poder judicial português. E estará Portugal preparado para esse novo século? Atrevo-me a dizer que, se o século XXI é o do poder judicial, algumas coisas vão ter de mudar: 1 – Comecemos com a questão da prestação de contas. Não se trata de observar o óbvio – os poderes legislativo e executivo têm uma legitimidade eleitoral que falta ao poder judicial. Vou mais longe. Os poderes legislativo e executivo têm rostos e caras, instituições (inclusivamente os partidos políticos), procedimentos que são dissecados, criticados, avaliados. Se bem ou mal avaliados, se justa ou injustamente criticados, isso já é a qualidade da democracia. Mas estão sujeitos ao exame público. Ora, em Portugal, o poder judicial foge disso. E a comunicação social ainda não mudou de hábito. Dou três exemplos de celeumas recentes. Num artigo anterior, falei do caso da aluna de Medicina que teve de abandonar a universidade por uma decisão controversa de três juízes do STA (Acórdão 1079/16). Ora, a cobertura jornalística usou sempre o termo “decisão do STA”, nunca dando rosto aos três juízes ( Jorge Madeira dos Santos, Teresa Ferreira de Sousa e José Francisco Fonseca da Paz) que decidiram como decidiram e muito menos solicitando aos juízes que defendessem e explicassem ao público as razões que lhes assistiram nessa decisão. Meses mais tarde, tivemos o famoso caso do Estado português condenado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por outra decisão muito polémica do STA com considerações sobre a vida sexual feminina depois dos 50 (Acórdão 279/14). Nunca os três juízes (Alberto Costa Reis, Maria Fernanda dos Santos Maçãs e José Francisco Fonseca da Paz) foram citados ou entrevistados para explicar o seu raciocínio. Um terceiro exemplo: o Tribunal da Relação de Lisboa anunciou em janeiro que a jurisprudência europeia sobre o exercício da liberdade de expressão não vincula os tribunais portugueses (Acórdão referente ao Processo 2175/11.4TDL.SB.L1-9), com as inevitáveis consequências que a seu tempo essa decisão terá para o Estado português; mais uma vez, na discussão pública, a decisão foi do coletivo abstrato e os dois juízes (Vítor Morgado e Maria do Carmo Ferreira) não foram convidados a debater pu- blicamente as suas razões. Em 2017, decisões importantes dos tribunais portuguesas continuam a ser atribuídas a um coletivo sem rosto, a uma entidade abstrata. A comunicação social raramente interpela o relator (quanto mais os restantes membros do coletivo). A discussão pública é feita totalmente à margem das responsabilidades individuais. Parece que só existe o juiz Carlos Alexandre e outra meia dúzia. As recentes promoções para o STJ não interessaram a ninguém fora do meio judiciário. Se o século XXI é o século do poder judicial, certamente a prestação de contas terá de mudar profundamente. Numa democracia em que o poder judicial interfere com as políticas públicas e com a vida política, como aliás é saudável, não é aceitável que se insistam em ficções de coletivos abstratos. 2 – Depois temos o tema do recrutamento e da transparência das decisões. Há uma polémica em Oeiras e descobre-se que o juiz, afinal, foi parte do mundo PSD. Litigam-se os contratos de associação. Uns ganham em Leiria e sabe-se que a juíza integrou vários governos PS. Outros ganham em Coimbra e logo se comenta que o juiz era próximo do CDS. Nestes casos, os nomes, sim, foram publicados. Mas, evidentemente, um poder judicial que decide sobre políticas públicas tem de tratar estas incompatibilidades de outra forma. Um passado com atividade partidária não deve excluir admissão à carreira judicial, mas requer uma exigência máxima. A recusa de juiz não pode ser tratada com formalismos e explicações que ninguém entende, mas sim com o bom senso de uma democracia saudável. Se são comprovadas pelos órgãos próprios as ligações da natureza ilustrada pelos exemplos, os litígios não podem ser decididos pelos juízes em causa. Na minha opinião, contudo, acresce que se o passado não exclui, o futuro, sim, deveria excluir. Magistrados judiciais que queiram prosseguir carreiras políticas não devem ter a possibilidade de regressar aos tribunais. Por exemplo, gosto muito da atual ministra. Mas discordo frontalmente que, enquanto ministra, possa tomar posse como juíza do STJ (notícia de novembro de 2016), por mais que isso seja uma penalização injusta para a pessoa em causa. Se vamos ter o século do poder judicial, então não pode haver transferências entre poderes ao sabor das conveniências do momento. 3 – Se os funcionários dos poderes executivo e legislativo (governo e da Assembleia da República) podem fazer greve, salvo melhor opinião, também acho defensável que os funcionários do poder judicial possam fazer greve. Parece-me, contudo, que o conceito do juiz-funcionário do poder judicial não é compatível com a ideia do século do poder judicial. Se os juízes reclamam ser titulares do poder judicial, como os ministros são titulares do poder executivo e os deputados do poder legislativo, e se vivemos no século do poder judicial como paladino da democracia, então o direito à greve dos magistrados judiciais não faz sentido nenhum. Portanto, são os magistrados judiciais quem deve decidir: ou são funcionários como no século XX e fazem as greves reivindicativas que entenderem, ou são poder judicial no século XXI, participando ativamente no diálogo democrático com os outros dois poderes, no estatuto constitucional que lhes corresponde. As duas coisas ao mesmo tempo, simplesmente, não são possíveis.
Se o século XXI é o século do poder judicial, certamente a prestação de contas terá de mudar profundamente