Poitiers tem um auditório onde público e orquestra viajam juntos
Da autoria do arquiteto português Carrilho da Graça, o Teatro e Auditório de Poitiers é exemplo da boa arquitetura nacional
A obra foi acompanhada pela população de Poitiers passo a passo, tanto na discussão de cada pormenor como através de uma câmara cujas imagens estavam disponíveis em tempo real na internet e permitia ver como corriam os trabalhos. Apesar de toda a informação e de já se terem passado nove anos desde a inauguração do Teatro e Auditório de Poitiers (TAP), no sábado foi muita a curiosidade em torno da visita e da conferência de João Luís Carrilho da Graça, responsável pelo projeto.
“Uma visita ao contrário” foi a proposta do arquiteto português para esta iniciativa integrada nas Jornadas Europeias do Património, assinaladas em França no último fim de semana e em Portugal no próximo. A visita fez também parte do programa inaugural da Casa da Arquitetura, para divulgar o melhor da arquitetura portuguesa construída na Europa antes da abertura das portas das novas instalações, em Matosinhos, a 17 de novembro (ver texto ao lado).
Após uma breve nota em que explicou que teve em conta a volumetria já construída e que, por isso mesmo, os dois retângulos que formam o TAP não ultrapassam em altura o vizinho Banco de França, foi pela entrada para cargas e descargas que começou a descoberta. “Esta estrutura que vemos é a que suporta o auditório”, indica o arquiteto, apontando tanto para cima como para o amplo espaço que, como notou, “dá para entrarem camiões TIR e darem aqui a volta sem problemas”. “Este é o nível mais importante. É aqui que tudo se passa, em termos técnicos e artísticos”, explica Carrilho da Graça. E antes de continuar, Denis Garnier, diretor do TAP até 2010 e que acompanhou todo o processo de decisão e construção do equipamento, interrompe. “Parece que [o arquiteto Carrilho da Graça] foi o único [dos quatro a concurso] que leu o meu texto sobre o que se pretendia para este edifício. Para além de uma qualidade estética incontestável, é de uma funcionalidade incrível por colocar no mesmo nível do edifício o trabalho técnico e o artístico, facilitando o dia-a-dia de quem aqui trabalha.”
Basta subir a meia dúzia de degraus do cais de carga e descarga, por onde entra todo o material utilizado no teatro de 700 lugares, e uns passos à frente já se pisam as tábuas pretas do palco. Aí enumera vários aspetos técnicos que colocam esta sala em linha com o que de mais atual existe. Para além do fosso de orquestra, o arquiteto indica a altura da torre de cena (30 metros), algo que do exterior do edifício não se adivinha, tendo Carrilho da Graça completado a forma retangular desta parte do edifício com as instalações para a administração, no piso superior.
Ainda no mesmo nível, acede-se às três salas de ensaio, aos camarins, tanto dos atores como dos músicos das três orquestras associadas do TAP, assim como ao pátio e ao foyer dos artistas, local de encontro de todos os que aqui trabalham.
Momento então para subir ao foyer principal do TAP, que recebe todos os anos mais de uma centena de espetáculos, sendo esta uma das 70 instituições francesas da rede pú- blica e, por isso mesmo, com financiamento anual do Ministério da Cultura francesa. É este o espaço de ligação entre o teatro e o auditório, com quase 1100 lugares sentados.
“O conceito do auditório foi privilegiar a excelência acústica”, começa por dizer, preparando a audiência para os pormenores de construção ali mesmo à vista, mas impercetíveis para leigos. Com o belga Daniel Cummins, especialis- ta em acústica que, entre outras obras, trabalhou na Cité de La Musique de Paris, “do ponto de vista da acústica estudámos tudo o que era possível para conseguirmos um ponto de excelência”.
“Durante as obras, sentíamo-nos como se estivéssemos a construir um barco em que o público e a orquestra viajam juntos”, partilha Carrilho da Graça. O efeito é conseguido através da solução em que o arquiteto português apostou, mesmo fugindo ao que era pedido no programa para a obra. “Arriscámos”, reconhece. O arriscar materializou-se numa plateia toda num mesmo plano, a um nível um pouco abaixo do palco, onde cabem 160 músicos. As paredes são revestidas a madeira, numa espécie de ondulado irregular e de diferentes espessuras, e o chão, também de madeira, foi todo montado sem recurso a um único parafuso, prego ou qualquer outro elemento metálico. E até o espaço entre as cadeiras – também elas de madeira – foi estudado ao pormenor: são exatamente 90 centímetros. Porque, refere Carrilho da Graça, “tal como me explicou Daniel Cummins, desta forma o som de cada instrumento viaja pelas paredes e teto formando como que uma nuvem de sons que chega de forma homogénea a todos os lugares”. Até mesmo aos que se encontram colocados no plano superior, em redor da plateia, permitindo que se assista a um concerto por trás da orquestra. Para terminar, o arquiteto chama a atenção para um pormenor quase escondido: uma passadeira técnica, que percorre toda a sala através de três calhas no teto, permitindo qualquer trabalho técnico. Quanto à qualidade conseguida, Carrilho
da Graça aponta os 25 discos que já foram gravados no auditório a pedido de artistas que, depois de atuarem na sala, pediram para o utilizar para esse fim
À saída do auditório, uma palavra ainda para os espaços de ligação entre os dois volumes que formam o Teatro e o Auditório de Poitiers, preparados com todas as condições técnicas para serem facilmente transformados em palcos, com as escadas pensadas de forma a poderes ser plateia.
Situado a meio do percurso que faz a ligação da estação de caminhos-de-ferro e o centro histórico da cidade, a fachada do TAP é revestida com vidro polido que reflete o edificado que o circunda. Ocupando 33 mil metros quadrados e representando um investimento público de 60 milhões de euros, esta foi uma obra que, admite, o fez sofrer muito, num processo que se prolongou durante oito anos. “O sistema regulamentar e administrativo francês é muito complicado e alguns aspetos foram desenhados dezenas de vezes até serem aprovados. Resistir ao combate de discussão de cada detalhe é um trabalho muito duro.” E partilha uma história: “A escada que dá acesso ao TAP a partir do centro histórico foi muito contestada por questões de acessibilidade. Muito além das regulamentares. E foi numa reunião com mais de 60 pessoas representando várias deficiências físicas que um senhor de óculos escuros [cego] acabou por desbloquear a questão ao colocar uma pergunta muito simples: e o belo, não temos também de pensar no belo?” Mas remata: “Estou pronto para sofrer de novo.”