Diário de Notícias

A paisagem protegida de Sam Shepard

Após 50 anos de carreira como dramaturgo, o também ator e músico publicou o primeiro romance no ano em que morreu

-

JOÃO GOBERN Em tempos idos, Samuel Shepard Rogers III (1943-2017) considerou que o maior problema da América residia na disfuncion­alidade das famílias, problema sentido por uma avassalado­ra maioria dos cidadãos do país, pouco importando se as “anomalias” eram explícitas e violentas, ou apenas latentes e sublimadas. Quem conhece a sua obra dramática, iniciada em 1964 com Cowboys e encerrada (em vida, já que parece haver acervo suficiente para que venham a descobrir-se prolongame­ntos post mortem) em 2014 com A Particle of Dread num total de 44 peças, sabe que o tema foi um dos que mais glosou, numa “transferên­cia” que os estudiosos associam à própria vida do autor, que chegou a caracteriz­ar o pai como um “dedicado alcoólico”.

Não espanta, por isso mesmo, que grande parte de The One Inside, o único romance publicado por Shepard, assente numa relação entre pai e filho de desconfian­ça, de traição, de mero desinteres­se, de resignação mútua até se instalar o desinteres­se. Em episódios curtos, o autor aproveita para se “desforrar” de uma impossibil­idade técnica que, de certa forma, o limitou enquanto dramaturgo: o vaivém constante entre passado e presente, entre as várias idades das suas personagen­s, entre causas e consequênc­ias de uma vida dura, sem tempo para demonstraç­ões de afeto.

Acresce que, como cenário envolvente, Sam Shepard volta a fazer uso daquilo que nos aparece como a sua “paisagem protegida”: longe das cidades norte-americanas, de arranha-céus e néons, densamente populadas, aí vai ele à solta por ambientes suburbanos, desolados, sem esperança, em que o isolamento e a distância que separa as casas se pode facilmente transferir para as pessoas. Mais uma vez, entra em cena a autobiogra­fia: Shepard cresceu e trabalhou num rancho e, logo que as finanças lho permitiram, voltou a radicar-se numa propriedad­e rural e pecuária, longe das metrópoles em que viveu nos anos de combate por um lugar ao sol – Nova Iorque (em que descobriu as suas três grandes paixões artísticas: Samuel Beckett, o jazz e a pintura expression­ista abstrata) – e Londres, onde morou entre 1971 e 1975.

Em The One Inside, livro espasmódic­o que mereceria uma banda sonora ao jeito de Ry Cooder, Shepard reserva um papel muito específico às mulheres: se elas parecem secundária­s, acabam por tornar-se determinan­tes no decurso da narrativa. Acontece com uma mulher apresentad­a como a “Rapariga Chantagist­a”, que quer publicar um livro com as transcriçõ­es dos diálogos que manteve com um dos protagonis­tas e que secretamen­te gravou, acabando por desaparece­r repentinam­ente. O que, ao invés de gerar alívio no acossado, deriva para uma sensação de vazio. Sucede, também, com Felicity – nome lapidar para quem acaba morta –, uma menina-mulher que se torna amante do pai, antes de seduzir o filho…

A escrita de Shepard para este romance já levou Michiko Kakutani, do The NewYork Times, a defender que o escritor segue de perto as pisadas do cineasta italiano Federico Fellini em Fellini 8 em que se juntam a realidade, o surreal e o imaginário, regidos, e não necessaria­mente harmonizad­os, pelos exclusivos caprichos de quem cria.

Patti Smith, que namorou com Sam Shepard quando ainda não tinham alcançado o estatuto de figuras planetária­s, aponta no prefácio outra via explicativ­a, sintetizan­do The One Inside como um livro “de um solitário que não se revela um grande apreciador da solidão”. Sem abandonar a sua zona de conforto, dir-se-ia que este testamento literário está à altura, alargando fronteiras, completand­o horizontes, do que ficou para trás. E foi tanto… Em toda a parte O romance era um das categorias que faltavam a um trajeto artístico tão múltiplo quanto rico. Bastará lembrar que Sam Shepard contri- buiu para o enredo de Ó Calcutá, uma peça musical vanguardis­ta, estreada em Nova Iorque em 1969, e para o enredo de Deserto de Almas (ou Zabriskie Point), de Michelange­lo Antonioni, filme estreado em 1970. Foi parceiro de Bob Dylan no guião do filme que este realizou em 1978, Renaldo e Clara; uma colaboraçã­o reativada na autoria da canção Brownsvill­e Girl, odisseia de 11 minutos considerad­a uma das pedras-de-toque da fase moderna do homem que ganhou o Nobel da Literatura. Coube-lhe escrever o argumento do genial Paris, Texas (1984), deWimWende­rs.

Depois de ter sido músico (baterista) em duas bandas, na viragem da década de 1960 para a seguinte, deu o primeiro grande passo como ator de cinema às mãos de Terrence Malick, em Os Dias do Paraíso (1978). Seguiu-se mais de meia centena de filmes, alguns deles dirigidos por distintos criadores, como Philip Kaufman (Os Eleitos, que valeu a Shepard uma nomeação para o Óscar), Robert Altman, Bruce Beresford, Herbert Ross, Alan J. Pakula, PeterYates, Scott Hicks, Ridley Scott eWenders. Paralelame­nte, fez parte do elenco de fitas realizadas por atores – casos de Nick Cassavetes, Billy Bob Thornton e Sean Penn.

Com ironias à mistura, como o facto de a carreira de Shepard como ator de teatro ter durado exatamente uma noite, a da estreia nova-iorquina de Cowboy Mouth (escrita a meias com Patti Smith), de 1971, em que desempenho­u o papel de Slim. Na segunda noite, já tinha desapareci­do da cidade… Em compensaçã­o, foi o cinema, durante a rodagem de Frances, que lhe permitiu conhecer o grande amor da sua vida, a atriz Jessica Lange, com quem viveu de 1982 a 2009. Teve três filhos (dois de Lange). E ganhou um prémio Pulitzer (1978) pela peça Buried Child.

Morreu em julho passado, vitimado pela esclerose lateral amiotrófic­a, no seu rancho do Kentucky. Ou seja, regressado à condição de solitário que, porventura, sempre combateu.

The One Inside

 ??  ?? Autor de mais de 44 peças de teatro, Sam Shepard procurou sempre o lado menos cintilante da América. O romance The One Inside confirma a regra
Autor de mais de 44 peças de teatro, Sam Shepard procurou sempre o lado menos cintilante da América. O romance The One Inside confirma a regra
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal