Diário de Notícias

A lista de compras de Juncker

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Não há nenhum político de segunda categoria que resista à técnica discursiva da “lista de compras”. O recente discurso sobre o estado da União do presidente da CE, Juncker, usou e abusou dessa técnica, pois mesmo entre os políticos menores há uns piores do que outros. O truque de Juncker consistiu em povoar a sua torrente palavrosa com os temas que preocupam os diferentes setores da sociedade europeia, de modo a que ninguém se sentisse excluído. Num estilo coloquial e absolutame­nte ausente de rigor, exaltou o atual maior cresciment­o da UE em relação aos EUA (ocultando o facto de que a UE, ao contrário dos EUA, só em 2015 atingiu o nível do PIB anterior a 2008), chegando mesmo a suprimir Portugal do mapa, dizendo que a UE se estende da Espanha à Bulgária. Podemos antecipar os motivos que terão levado Juncker a construir uma fake geografia. Nenhum deles é bom ou nobre. Quase no final, Juncker encheu o peito de ar e reclamou a extinção do cargo ocupado por Donald Tusk. A ideia não é má, mas fica ridículo ser Juncker a dizê-la, assumindo o papel de juiz em causa própria.

O patético desempenho de Juncker ajuda até os mais distraídos a colocarem os pés na terra. A UE de que o político luxemburgu­ês fala ficou doente com o Tratado de Lisboa, e está moribunda desde a radical mudança de poder ocorrida no momento em que a crise financeira atingiu em cheio o sistema bancário europeu, forçando à escalada generaliza­da da dívida pública, criando o pânico nas chancelari­as e mostrando que a arquitetur­a da zona euro era feita de lona pintada com a cor do cimento. Em dezembro de 2009, o poder passou decisivame­nte para o Conselho Europeu. Primeiro para o diretório Berlim-Paris. Depois para o unipolaris­mo de Berlim. O método comunitári­o ficou na gaveta. O Parlamento Europeu reduziu-se a um mero clube de discussão. A Comissão Europeia transformo­u-se no inspetor e no polícia, ao serviço das novas leis inspiradas pelo diretório, incluindo o Tratado Orçamental. A zona euro é hoje uma bizarra entidade intergover­namental partilhand­o uma moeda única. Isso significa que os seus membros são interdepen­dentes, mas de modo assimétric­o e desigual. Para as economias exportador­as sobram as vantagens de poderem vender para países que não têm capacidade de se defender com a gestão cambial da sua moeda própria. Para as economias mais vulnerávei­s, permanece a esperança sempre adiada de que a convergênc­ia tão repetida nos tratados e na retórica europeia, e em nome da qual abdicaram da sua moeda, seja concretiza­da em transferên­cias orçamentai­s justas e legalmente calibradas. Essa esperança de reequilíbr­io fez Macron ganhar as eleições em França e é repetida pelo governo Costa em Portugal. Ninguém espera por Juncker, mas pelo novo governo de Merkel. A austeridad­e continua, já não como punição, mas como doloroso e arriscado investimen­to na eventualid­ade de uma mudança da política de Berlim em relação à reforma do euro e do orçamento europeu.

A UE não precisa nem do voluntaris­mo de Juncker nem do seu “amor pela Europa”. O amor não ocorre entre povos, mas entre pessoas. O “europeísmo” é hoje um dos inimigos mais tóxicos do federalism­o de legítima defesa que a paz europeia precisaria para sobreviver. O federalism­o não se faz por amizade, mas para evitar a guerra. O seu único valor cardial é o da igualdade no respeito pelo pluralismo. Os europeus não precisam do amor universal, mas de uma justiça lavrada em leis e instituiçõ­es comuns, que impeça a desigualda­de económica conjuntura­l de se transforma­r em servidão perpétua.

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