O mesmo roteiro
Epensar que tudo começou num paroquial crime de tráfico de influências antes de tomar as proporções tremendas, desmesuradas, astronómicas que se conhecem. Todos os dias, um novo (ou velho) político é apanhado num escândalo sem inocentes. Os jornais, as televisões, as rádios tornaram-se quase monotemáticos.
Somados, o número de investigados, os mandados de busca e apreensão e as ordens de prisão chegam aos cinco dígitos. Do dinheiro desviado perdeu-se a conta. Fala-se de milhões roubados como quem fala de tostões, enquanto nos serviços públicos, da saúde à educação, do transporte à segurança, se desinveste.
Foi, antes de tudo, uma estatal petrolífera que alimentou a ganância da elite política e de empresários que, antes de serem detidos, monopolizavam as colunas sociais. Nas empresas deles, com destaque para um poderoso cartel de construtoras, a polícia encontrou sinistras planilhas onde se detalhava, um por um, o pagamento a cada autoridade. A realização, conveniente, de um Mundial de futebol pelo meio, com centenas de obras públicas anexas, ajudou essas construtoras, e por ex- tensão os políticos, a lucrarem à conta do contribuinte.
Os depoimentos à polícia dos arrependidos, com métodos sofisticados para corromper sem deixar rastro, são aulas sobre lavagem de dinheiro.
Práticas policiais como as delações premiadas, em que o criminoso diminui a severidade da pena em troca de provas, como as prisões preventivas, para forçar essa mesma delação, e como as fugas de informação selecionadas, para manter a opinião pública a torcer pela investigação, tornaram-se quotidianas. E, sem surpresa, fonte de críticas dos visados e dos seus advogados.
Os visados que, dos mais aos menos poderosos, dos mais à esquerda aos mais à direita, argumentam que são vítimas de perseguição política da polícia, dos juízes, da imprensa. Fala-se, sem pudor, em “criminalização da política”, em “golpes” e “golpistas” e em “interesses estrangeiros por trás disto tudo”.
O esplendor da operação levou a uma perigosa polarização no país. E a um não menos temerário culto da personalidade aos jovens magistrados que a conduzem – a um em particular.
Esse juiz chama-se Antonio Di Pietro, o país em causa é a Itália, a operação esplendorosa é a Mani Pulite (Mãos Limpas), o Mundial de futebol citado é o de 1990 e o resumo acima, embora encaixe pormenor por pormenor na Lava-Jato, poderia ter sido feito há 25 anos.
Faz parte do folclore em redor de Sergio Moro – o Di Pietro brasileiro – dizer-se que o jovem juiz de primeira instância do Paraná mantém à mesa de cabeceira o relatório final da Mani Pulite, cujo roteiro segue ponto por ponto.
Ora esse roteiro entrou agora na fase mais perigosa ao chegar às mãos do Congresso Nacional, onde, também ponto por ponto, os parlamentares tentam aprovar as mesmas leis que os homólogos italianos aprovaram nos anos 90 do século passado no sentido de manter tudo como dantes: amnistiar o caixa dois (saco azul, em Portugal) e criar obstáculos às ações da polícia e da justiça.
Rogério Chemim, um procurador da República brasileiro, alerta para essa ameaça no seu recente Mãos Limpas e Lava Jato. E para a ameaça seguinte: o risco do populismo.
No Brasil, é certo, não existe uma personalidade com tantas nuances como Silvio Berlusconi, mas há Lula, líder popular de esquerda que já se declarou pré-candidato nas eleições do próximo ano, ou Jair Bolsonaro, demagogo radical de direita.
E, pelo menos, três homens de televisão – como o italiano – já em bicos de pés: o apresentador Luciano Huck, entretanto abençoado pelo antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, que o chamou de “novidade”; Roberto Justus, publicitário que apresenta um reality show e se diz sentir preparado para o Planalto; e João Doria, que apresentou a primeira versão brasileira do The Apprentice, um original de Donald Trump, ganhou a prefeitura de São Paulo com um discurso, como o de Berlusconi, populista e antipolítica, e segue firme nos primeiros lugares das sondagens.
O roteiro já se conhece, acompanhemos, com atenção, os próximos episódios.