Votar ou ir à bola
1A Liga de Futebol Profissional, ao marcar o jogo Sporting-Porto para o dia das eleições autárquicas, colocou os adeptos do Porto com intenção de assistir ao jogo no estádio perante um dilema: votar ou ir à bola. É verdade que a escolha também podia passar por votar muito cedo e sair depois, mas não há dúvida de que a marcação de jogos de futebol em dia de eleições não contribui para estimular a ida às urnas. Porém, não se pode considerar que se trata de um obstáculo que impede, contra a vontade do próprio, o exercício do direito de voto. Obriga a uma escolha, talvez difícil, mas não é um verdadeiro impedimento. Em dia de eleições, há muitas outras situações que desafiam o sentido cívico e de responsabilidade dos eleitores. As praias, nos dias de sol, os cinemas ou os fins de semana prolongados podem contribuir para aumentar a abstenção, quando são pretexto para aqueles que, livremente, escolhem não votar.
2É claro que os governos devem preocupar-se com as condições reais para o exercício do direito de voto. A abstenção tem uma expressão dramática em Portugal. Mais de metade dos eleitores não votam. Muitos destes são jovens. E a abstenção resulta do facto de, não sendo o voto obrigatório, alguns escolherem não exercer o direito de votar. Mas resulta também do facto de, por motivos alheios à sua vontade, alguns cidadãos enfrentarem impedimentos no acesso ao direito de voto. Não sendo o voto obrigatório em Portugal, não faz sentido legislar para proibir determinadas atividades e, dessa forma, condicionar ou limitar as escolhas de cada um. Mas já faz todo o sentido que se tomem medidas para contrariar a abstenção.
3Em primeiro lugar, medidas para facilitar ou para melhorar as condições de acesso ao direito de voto por todos aqueles que, querendo votar, são impedidos de o fazer por razões alheias à sua vontade. Ou seja, aqueles que não têm escolha. Estão nesta situação, entre outros, doentes hospitalizados, estudantes deslocados, presos, pessoas no estrangeiro ou que enfrentam impedimentos profissionais. São, em geral, situações em que os cidadãos se encontram deslocados e, portanto, impedidos de, no dia das eleições, se apresentarem nas mesas de voto da sua área de residência. Existem já procedimen- tos estabelecidos que permitem a cidadãos nestas condições o voto antecipado. Mas vale a pena pensar se não é possível fazer melhor. Se não é possível ter o voto Simplex e não apenas antecipado.
4Por exemplo, para votar nestas autárquicas os deslocados no estrangeiro por motivos profissionais tiveram de se apresentar nas representações diplomáticas entre os dias 11 e 13 de janeiro. Não poderão votar todos aqueles que saíram do país depois dessa data, ou seja, nos últimos dez meses, ou que saíram por outros motivos. Os hospitalizados também tiveram de requer o voto antecipado até ao dia 11 de setembro. Não poderão votar todos aqueles que adoeceram depois dessa data. Além de, para a maioria das pessoas, ser impossível prever a sua situação com antecedência, a exigência burocrática de “apresentação de comprovativo assinado pelo superior hierárquico, pela entidade patronal ou outro que comprove suficientemente a existência de impedimento”, também já não se usa. Devia ser suficiente a palavra e a vontade de votar. Os procedimentos previstos para o voto antecipado são, no mínimo, desencorajadores. Precisam de ser modernizados. As situações de mobilidade afetam, cada vez com mais frequência, mais pessoas. O processo eleitoral devia incorporar a mobilidade como uma situação de normalidade, não de excecionalidade. Existem hoje meios tecnológicos para dispor de cadernos eleitorais eletrónicos acessíveis em todas as mesas de voto. Porque não trabalhar no sentido de, a curto prazo, permitir que cidadãos deslocados ou em mobilidade possam votar, no dia das eleições, no local em que se encontram?
5Em segundo lugar, medidas que estimulem o exercício do direito de voto. Em alguns países está consagrada a obrigatoriedade de votar, o que conduz a taxas de abstenção inferiores. Porém, taxas elevadas de participação também se registam em alguns (poucos) países onde votar não é obrigatório. Vários estudos que alimentam este debate concluem que a obrigatoriedade contribui para diminuir a abstenção, favorecendo, porém, os partidos do centro político. Com a rigidez existente no nosso sistema político-partidário, não creio que seja razoável a introdução da obrigatoriedade. Mas era muito importante promover um debate sobre que medidas tomar para combater a abstenção onde ela é mais elevada, como é o caso entre os jovens. No Reino Unido discutiu-se, por exemplo, a obrigatoriedade do voto na primeira eleição após a obtenção de capacidade eleitoral. Mais consensual, poderia ser uma intervenção mobilizadora para o exercício do direito ao voto por escolas e as universidades, instituições onde a grande maioria dos jovens com 18 ou mais anos passa a maior parte dos seus dias.
6Esperava-se que este episódio da bola suscitasse um debate público sobre o que fazer perante tão elevados níveis de abstenção. Mas não. Apenas um ruído paralisante. Salva-se, apenas, o facto de que, com a alteração da hora do jogo Sporting-Porto, aqueles que querem ir à bola deixaram de ter desculpa para não votar.
Esperava-se que este episódio da bola suscitasse um debate público sobre o que fazer perante tão elevados níveis de abstenção. Mas não. Apenas um ruído paralisante