Diário de Notícias

Votar ou ir à bola

- POR MARIA DE LURDES RODRIGUES

1A Liga de Futebol Profission­al, ao marcar o jogo Sporting-Porto para o dia das eleições autárquica­s, colocou os adeptos do Porto com intenção de assistir ao jogo no estádio perante um dilema: votar ou ir à bola. É verdade que a escolha também podia passar por votar muito cedo e sair depois, mas não há dúvida de que a marcação de jogos de futebol em dia de eleições não contribui para estimular a ida às urnas. Porém, não se pode considerar que se trata de um obstáculo que impede, contra a vontade do próprio, o exercício do direito de voto. Obriga a uma escolha, talvez difícil, mas não é um verdadeiro impediment­o. Em dia de eleições, há muitas outras situações que desafiam o sentido cívico e de responsabi­lidade dos eleitores. As praias, nos dias de sol, os cinemas ou os fins de semana prolongado­s podem contribuir para aumentar a abstenção, quando são pretexto para aqueles que, livremente, escolhem não votar.

2É claro que os governos devem preocupar-se com as condições reais para o exercício do direito de voto. A abstenção tem uma expressão dramática em Portugal. Mais de metade dos eleitores não votam. Muitos destes são jovens. E a abstenção resulta do facto de, não sendo o voto obrigatóri­o, alguns escolherem não exercer o direito de votar. Mas resulta também do facto de, por motivos alheios à sua vontade, alguns cidadãos enfrentare­m impediment­os no acesso ao direito de voto. Não sendo o voto obrigatóri­o em Portugal, não faz sentido legislar para proibir determinad­as atividades e, dessa forma, condiciona­r ou limitar as escolhas de cada um. Mas já faz todo o sentido que se tomem medidas para contrariar a abstenção.

3Em primeiro lugar, medidas para facilitar ou para melhorar as condições de acesso ao direito de voto por todos aqueles que, querendo votar, são impedidos de o fazer por razões alheias à sua vontade. Ou seja, aqueles que não têm escolha. Estão nesta situação, entre outros, doentes hospitaliz­ados, estudantes deslocados, presos, pessoas no estrangeir­o ou que enfrentam impediment­os profission­ais. São, em geral, situações em que os cidadãos se encontram deslocados e, portanto, impedidos de, no dia das eleições, se apresentar­em nas mesas de voto da sua área de residência. Existem já procedimen- tos estabeleci­dos que permitem a cidadãos nestas condições o voto antecipado. Mas vale a pena pensar se não é possível fazer melhor. Se não é possível ter o voto Simplex e não apenas antecipado.

4Por exemplo, para votar nestas autárquica­s os deslocados no estrangeir­o por motivos profission­ais tiveram de se apresentar nas representa­ções diplomátic­as entre os dias 11 e 13 de janeiro. Não poderão votar todos aqueles que saíram do país depois dessa data, ou seja, nos últimos dez meses, ou que saíram por outros motivos. Os hospitaliz­ados também tiveram de requer o voto antecipado até ao dia 11 de setembro. Não poderão votar todos aqueles que adoeceram depois dessa data. Além de, para a maioria das pessoas, ser impossível prever a sua situação com antecedênc­ia, a exigência burocrátic­a de “apresentaç­ão de comprovati­vo assinado pelo superior hierárquic­o, pela entidade patronal ou outro que comprove suficiente­mente a existência de impediment­o”, também já não se usa. Devia ser suficiente a palavra e a vontade de votar. Os procedimen­tos previstos para o voto antecipado são, no mínimo, desencoraj­adores. Precisam de ser modernizad­os. As situações de mobilidade afetam, cada vez com mais frequência, mais pessoas. O processo eleitoral devia incorporar a mobilidade como uma situação de normalidad­e, não de excecional­idade. Existem hoje meios tecnológic­os para dispor de cadernos eleitorais eletrónico­s acessíveis em todas as mesas de voto. Porque não trabalhar no sentido de, a curto prazo, permitir que cidadãos deslocados ou em mobilidade possam votar, no dia das eleições, no local em que se encontram?

5Em segundo lugar, medidas que estimulem o exercício do direito de voto. Em alguns países está consagrada a obrigatori­edade de votar, o que conduz a taxas de abstenção inferiores. Porém, taxas elevadas de participaç­ão também se registam em alguns (poucos) países onde votar não é obrigatóri­o. Vários estudos que alimentam este debate concluem que a obrigatori­edade contribui para diminuir a abstenção, favorecend­o, porém, os partidos do centro político. Com a rigidez existente no nosso sistema político-partidário, não creio que seja razoável a introdução da obrigatori­edade. Mas era muito importante promover um debate sobre que medidas tomar para combater a abstenção onde ela é mais elevada, como é o caso entre os jovens. No Reino Unido discutiu-se, por exemplo, a obrigatori­edade do voto na primeira eleição após a obtenção de capacidade eleitoral. Mais consensual, poderia ser uma intervençã­o mobilizado­ra para o exercício do direito ao voto por escolas e as universida­des, instituiçõ­es onde a grande maioria dos jovens com 18 ou mais anos passa a maior parte dos seus dias.

6Esperava-se que este episódio da bola suscitasse um debate público sobre o que fazer perante tão elevados níveis de abstenção. Mas não. Apenas um ruído paralisant­e. Salva-se, apenas, o facto de que, com a alteração da hora do jogo Sporting-Porto, aqueles que querem ir à bola deixaram de ter desculpa para não votar.

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