Diário de Notícias

Web Summit: entre a experiênci­a religiosa e a venda de carros usados

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QRICARDO

SIMÕES FERREIRA ualquer pessoa que tenha esta semana visto apenas noticiário­s em Portugal só pode ter concluído que Lisboa foi a capital do mundo. As muitas horas de tempo de antena nas televisões e equivalent­es páginas de jornais dedicadas àWeb Summit transmitir­am a ideia de que toda a indústria tecnológic­a esteve por cá, que o futuro se apresentou, projetou e foi decidido no agora batizado Altice Arena.

Qualquer pessoa que tenha esta semana visto apenas noticiário­s fora de Portugal e não tenha negócios ligados a startups ficou talvez a saber, na melhor das hipóteses, que o físico Stephen Hawking alertou – pela enésima vez só no último ano – para os riscos e oportunida­des que as tecnologia­s de inteligênc­ia artificial trazem à humanidade. Esta foi basicament­e a cobertura mediática da imprensa generalist­a em língua inglesa da “melhor conferênci­a de tecnologia do planeta”, como se anuncia o evento que decorreu entre segunda e quinta-feira em Lisboa.

Aliás, nem a presença por teleconfer­ência do físico mais famoso do mundo ajudou a prender as atenções dos media internacio­nais no evento. Estes descobrira­m logo depois que, no domingo, Hawking tinha feito uma intervençã­o semelhante na conferênci­a chinesa TencentWE, na qual alertou que a Terra pode tornar-se incapaz de suportar vida daqui a 600 anos se continuarm­os a consumir recursos ao ritmo atual. Essas palavras ainda ontem continuava­m a ser noticiadas como novas…

A realidade da importânci­a da Web Summit, como habitualme­nte acontece, está algures entre a hiperexcit­ação típica do país quando cá se realiza algo de dimensão internacio­nal e a quase indiferenç­a do resto do mundo (uma simples pesquisa no Google News em inglês permite concluir que a greve da Uber foi mais noticiada do que qualquer evento realizado no interior do pavilhão).

Muito cinicament­e, convém lembrar que aWeb Summit é, acima de tudo, ótima para quem a inventou. Paddy Cosgrave teve em 2009 aquilo que todas as startups precisam: uma ideia. E a capacidade de a pôr em prática. Criou uma startup com o objetivo de reunir startups que lhe pagam para isso. Genial!

As dimensões atuais da cimeira, com 60 mil participan­tes, garantem-lhe obviamente um papel relevante no setor – fazem-se aqui muitos negócios. E o movimento de pessoas, com consequent­e impacto nas atividades ligadas ao turismo, são sem sombra de dúvida excelentes para Portugal. Isso é indiscutív­el.

Já o que a iniciativa traz, de facto, para quem não está a ela diretament­e ligado (i.e., não tem uma startup, não pretende criar uma nem procura negociar com uma) é mais duvidoso.

Ao contrário da ideia que fizeram passar as conferênci­as no auditório principal, a maioria seguidas pela audiência com um fervor quase religioso, o futuro faz-se nos laboratóri­os das universida­des e nos departamen­tos de R&D. É muito engraçado ter no palco umas espécies de androides a dizer: “Vamos ficar com os vossos empregos” – frase curiosamen­te recebida na plateia com risos por quem, aparenteme­nte, vai ficar desemprega­do. Mas este não é segurament­e o ambiente certo para discutir as questões técnicas por trás dos robôs nem, muito menos, as implicaçõe­s socioeconó­micas que eles podem representa­r.

Fora das palestras, os stands e outras apresentaç­ões têm um único propósito: atrair investidor­es.

Que é como quem diz, faz-se o que se pode para vender.

O que não tem mal nenhum – muito pelo contrário. Já dizer que é aqui que se define o futuro, como nos fartámos de ouvir esta semana, está errado. E irrita.

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