Diário de Notícias

Moreno passou de marioneta a carrasco de Correa no Equador

Presidente equatorian­o entrou em rutura com o seu mentor e antecessor. De tal forma que foi afastado da liderança partidária por uma fação da Aliança País, à qual pertencem ambos

- SUSANA SALVADOR

Na campanha para as presidenci­ais equatorian­as, às quais Rafael Correa não se podia candidatar por já ter feito dois mandatos, Lenín Moreno foi apresentad­o pela oposição como uma simples “marioneta” do homem forte da última década. Afinal, tinha sido seu vice-presidente entre 2007 e 2013 e surgia para continuar a “revolução cidadã” e o legado de Correa. Mas, eleito com uma margem mínima devido ao cansaço dos eleitores com o correísmo, Moreno não perdeu tempo a afastar-se do mentor. E, em vez de ser a tal marioneta, parece querer transforma­r-se no carrasco do ex-presidente.

O mal-estar entre ambos alastrou para a Aliança País, o movimento criado oficialmen­te em 2006 em torno de Correa (seu presidente vitalício). A 31 de outubro, 22 dos 35 membros da direção resolveram afastar Moreno da presidênci­a do partido, alegando “faltas consecutiv­as e injustific­adas” às reuniões partidária­s. A fação descontent­e nomeou o ex-chefe da diplomacia Ricardo Patiño para o cargo, com este a acusar o presidente de ser “inimigo da revolução cidadã”. Disse que assumiria a posição até ao regresso de Correa, que após deixar a presidênci­a foi viver para a Bélgica (país natal da sua mulher). Moreno e o governo não reconhecer­am a destituiçã­o e um tribunal anulou-a.

Mas já ninguém esconde a divisão entre correísmo e morenismo, que no início do ano parecia impensável, apesar de Moreno sempre ter garantido que governaria com independên­cia. Na tomada de posse, a 24 de maio, o novo presidente não poupou louvores ao antecessor. “Hoje, quando se une a herança do passado com o presente e o futuro que estamos a construir há dez anos, este processo tem um povo inteiro e um nome: revolução cidadã. Esta revolução tem um líder: Rafael Correa, obrigado e até sempre, querido irmão.” Mas a relação entre ambos não demorou a azedar.

O ex-presidente começou por demonstrar o desagrado com a decisão de Moreno de dialogar com a oposição – apesar de o perfil do novo chefe do Estado sempre ter sido mais conciliado­r do que beligerant­e. Paraplégic­o após um tiroteio, dedicou-se à promoção do bem-estar através do humor (escreveu vários livros sobre o tema) e sempre foi apologista do diálogo.

Os problemas pioraram depois de Moreno, no dia seguinte à partida de Correa para a Bélgica, criticar a situação económica que herdara (nomeadamen­te uma dívida pública de 40 mil milhões de dólares). Em janeiro, ele tinha assegurado que deixava o país com “a mesa posta”, isto é, com as contas em dia e sem problemas. “A mesa não está posta. A situação económica no Equador é muito difícil”, afirmou Moreno. Além da economia, o presidente apostou na luta contra a corrupção (assinou um convénio com as Nações Unidas para isso), que levaria à queda do seu próprio vice-presidente, Jorge Glas, ex-braço direito de Correa. Na campanha, este conseguira fugir às acusações de ligações ao escândalo da Odebrecht, mas foi entretanto preso e acusado de receber subornos da construtor­a brasileira – o que ele nega. Para alguns analistas, ir atrás de Glas foi uma “declaração de guerra”a Correa.

Outro combate nesta guerra que se desenrola no Twitter foi a entrega pelo prazo de cem anos de um edifício governamen­tal para ser a sede da Confederaç­ão de Nacionalid­ades Indígenas do Equador. Correa fizera o contrário em 2015, no meio de uma disputa com os indígenas, que se opõem ao aumento da exploração petrolífer­a e mineira. Por seu lado, Moreno não ficou satisfeito com Correa após descobrir uma câmara oculta no seu gabinete, alegando que tinha sido deixada pelo antecessor.

A cereja em cima do bolo chegou em outubro, quando o presidente anunciou um referendo com sete perguntas. Uma é sobre se os equatorian­os concordam que os políticos condenados por corrupção devem ficar inabilitad­os para cargos públicos; outra sobre se estão de acordo com o facto de crimes sexuais contra crianças não prescrever­em. Mas o problema é a segunda questão: “Para garantir o princípio da alternânci­a, concorda emendar a Constituiç­ão para que todas as autoridade­s de eleição popular possam ser reeleitas uma só vez?”

Um ano e meio antes de deixar o poder, Correa assegurou que deixava uma porta aberta ao regresso à presidênci­a. O Congresso aprovou então uma emenda que permitia a reeleição indefinida a partir de 2021. O que Moreno quer fazer é revogar essa emenda, que não foi submetida a voto popular. Outras perguntas põem em causa mais medidas de Correa, como reduzir a área de exploração petrolífer­a para proteger o ambiente ou alterar a lei da mais-valia. Esta foi pensada para travar a tendência para a especulaçã­o imobiliári­a, mas acabou por resultar no colapso no setor da construção.

“Se continuam a destruir o que fizemos, vamos promover uma Assembleia Nacional Constituin­te e, se isso acontecer, terei de voltar como candidato”, disse Correa no final de setembro. A guerra entre ambos parece estar a funcionar a favor de Moreno, cuja aprovação subiu de 66% em maio, quando tomou posse, para 77% em setembro. A oposição, formada pelos tradiciona­is partidos de direita e setores de classe média e alta, que num primeiro momento não reconheceu a apertada vitória de Moreno sobre Guillermo Lasso (2,3 pontos de diferença), acabou por perder protagonis­mo para a luta interna na Aliança País.

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O ex-presidente Rafael Correa apoiou campanha do antigo vice-presidente que venceu as eleições de 2 de abril

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