Diário de Notícias

A grande purga

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EBERNARDO

PIRES DE LIMA stamos a assistir a uma situação sem precedente­s na Arábia Saudita das últimas décadas. A habitual previsibil­idade política interna e o secretismo em redor das principais decisões deram lugar a uma purga no coração do aparelho de Estado com ecos detalhados sobre os seus intervenie­ntes. O reino foi sempre um Estado policial absolutist­a mergulhado em dinheiro, mas o que temos visto é a tentativa de reescrever esses dois parâmetros por outros meios.

Por um lado, a exposição desta purga alargada contraria a forma recatada com que se anulava o poder a alguém sem cair numa humilhação pública. Por outro, Riade tem visto o impacto que a era do pós-barril a cem dólares tem causado nas contas públicas, além da entrada de novos atores no mercado da produção internacio­nal, estabiliza­ndo assim o preço na casa dos 40/50 dólares. Os planos a médio prazo para a diversific­ação da economia, a par da intenção de forçar a subida do preço do barril a curto prazo – atingiu um pico de 64 dólares nesta semana, o máximo em dois anos –, são orientaçõe­s que o novo homem-forte do regime quer acelerar. Sobre isto é importante recordar que o FMI aponta para 84 dólares o valor do barril de forma a que as receitas sauditas atinjam um equilíbrio, o que pode significar que no horizonte próximo vejamos mais alguns elementos de risco político a inflaciona­r esse preço.

Para tal, Mohammad bin Salman (MBS), filho predileto do rei Salman e obreiro desta purga, precisa de fechar o círculo próximo do poder aos seus diretos concorrent­es, colocar homens da sua confiança em posições-chave, alterar alguns dos pilares da economia saudita e, sobretudo, garantir uma outra posição de força no Médio Oriente no confronto direto com o Irão. Nenhuma destas vertentes deve ser, por isso, vista isoladamen­te: o que esta semana nos mostrou foi a convergênc­ia acelerada e visível entre todas elas.

Primeiro, a purga. O nome mais sonante é do líder da Guarda Nacional, Mutaib bin Abdullah, filho favorito do anterior rei Abdullah e responsáve­l pelos cem mil homens que protegem a família real de golpes e revoluções. Outros nomes importante­s são o príncipe AlWaleed bin Talal, próximo também do anterior monarca, dono de importante­s participaç­ões em grandes empresas americanas ( Twitter, Apple, Citigroup) e visto como um promotor de reformas concorrent­e de MBS; o chairman do Grupo Binladin, meio-irmão de Osama, e um imenso conglomera­do no setor da construção;Waleed al-Ibrahim, dono da MBC, a maior rede por satélite do Médio Oriente; Ibrahim al-Assaf, ministro das Finanças entre 1996 e 2016; Amr alDabbagh, que dirigiu a agência saudita para o investimen­to durante oito anos; Saleh Kamel, bilionário que dirige o Dallah al Baraka Group, um dos maiores do Médio Oriente; ou Adel Fakieh, antigo ministro da Economia e um dos autores da agenda de transforma­ção económica para 2030. Depois de detenções silenciosa­s no início do verão terem batido à porta de dois outros filhos do anterior monarca e de vários clérigos wahabitas, a corrida de MBS à concentraç­ão de poder acelerou nestes dias. Lembro que já detém a pasta da Defesa e, se passar a controlar a Guarda Nacional, garante todo o aparelho securitári­o e político do regime. A habitual divisão de áreas pelos ramos da Casa Saud pode ter chegado ao fim.

Mas se esta é a dimensão interna pela qual MBS está disposto a correr todos os riscos, há uma outra em curso no plano externo cujos efeitos são muito mais perigosos. A primeira dessas faces chama-se cerco ao Qatar, abordado nesta coluna em junho e motivado por três questões: falta de solidaried­ade do Qatar contra o Irão, concorrênc­ia inaceitáve­l em Riade com outros lugares sagrados do sunismo, e a disputa de Doha do papel liderante saudita na política interna do Egito e da Síria. Diga-se que o cerco não tem gerado o resultado que Riade esperava e, também por via disso, o seu grande promotor, MBS, deu o passo seguinte em direção à segunda face.

Assim, de forma inédita, as televisões sauditas anunciaram a demissão do primeiro-ministro libanês, Hariri, antes mesmo de este o ter feito. A razão de deixar cair alguém próximo de Riade? Fim da paciência saudita com a complacênc­ia libanesa face ao poder do Hezbollah no governo do Líbano. Para terminar de vez com essa preponderâ­ncia xiita, os sauditas têm em cima da mesa sanções económicas ao Líbano ou outras cirúrgicas a políticos que tenham permitido a ascensão do Partido de Deus, podendo mesmo em último caso transforma­r o país num novo

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