Diário de Notícias

MATOU ALGUÉM NA GUERRA? “… VAMOS PASSAR PARA A PERGUNTA SEGUINTE…”

- JOÃO CÉU E SILVA

Há muito que não se via o escritor António Lobo Antunes colaborar tanto na promoção de um seu livro como está a acontecer com Até Que as Pedras se Tornem mais Leves que a Água. É o seu mais recente romance, que, a exemplo de meia dúzia dos anteriores, está sagradamen­te pronto um ano antes e sempre com saída marcada para cada outubro de modo a entrar na grande corrida das vendas de Natal. E diga-se que não está a ser pouca a ajuda do autor nesta divulgação, que a editora agradece, pois nem sempre está para aí virado, contentand­o-se com uma ou outra entrevista tirada a ferros. Desta vez, colabora e não é pouco na publicidad­e do romance novo e veem-se resultados, pois nesta semana já chegara ao décimo lugar das tabelas da principal cadeia de livrarias portuguesa­s.

Daquilo que António Lobo Antunes já falou sobre este romance, sente-se a preocupaçã­o em passar uma mensagem eficiente e própria para o seu regresso literário à temática de África e da Guerra Colonial, mesmo que até hoje sempre tentasse recusar tocar no assunto que fez da sua primeira publicação em livro, Memória de Elefante, um sucesso raramente repetido em toda a carreira – o facto é que ultrapasso­u as três dezenas e meia de edições até hoje.

Mesmo que continuand­o a negar que se tenha afirmado enquanto autor com essa narrativa de uma guerra que no pós-25 de Abril precisava de ser exorcizada – fá-lo nesta entrevista –, é certo que António Lobo Antunes escreveu outras histórias de guerras, num estilo polifónico que surpreende­u os leitores fiéis e os novos, que atraiu sem receio de se perderem numa linguagem nova como era a sua. Entre esses regressos à guerra sob a forma do romance, ou das crónicas, que, diz, só escreve por dinheiro, está um dos seus pontos altos: Fado Alexandrin­o, um romance escrito para o pai, que nunca lhe dera o estatuto de escritor enquanto não saísse da torrente de palavras como era o inexcedíve­l Os Cus de Judas e criasse um universo mais clássico.

Este retorno a África surge ao 29.º romance, depois de ter aflorado o cenário em Comissão das Lágrimas, e após ter publicado um dos melhores trabalhos da sua carreira, Sôbolos Rios Que Vão. Se a guerra era o seu tema de eleição e lhe dera fama, nos últimos anos voltou a mudar de rumo – fizera-o após Exortação aos Crocodilos –, e deu início ao ciclo do “ouriço”. Ou seja, o do bicho mau que tem matado amigos e familiares: cancro.

Não será por acaso que esta doença dominou o imaginário do escritor, é que António Lobo Antunes passou por isso e revelou publicamen­te tudo o que sofreu física e psicologic­amente. O mais recente abalo foi a morte do seu irmão João [Lobo Antunes] pelo mesmo motivo. E para evitar um retorno à cama do hospital mantém um controlo médico periódico de modo a não voltar a ser apanhado de surpresa pelo cancro. É uma questão de sofrimento próprio que nunca o abandona, como se pode ler nesta longa conversa mais adiante.

Voltando ao seu mais recente romance, pode afirmar-se que a recordação do tema da Guerra Colonial foi uma quase surpresa, com um efeito literário garantido, pois são muitos os fãs da África que pintou no início. Não executa este regresso sem estardalha­ço, visto que o escritor fez questão de revelar uma situação nunca antes sabida, a de que alucina durante a noite frequentem­ente com o que viveu em Angola; que é solidário com os que sofreram e pelos “príncipes” que comandava; que acorda a pedir uma metralhado­ra G3 para se defender dos turras, bem como de outros momentos de stress pós-traumático que o próprio jamais acredita que vá ultrapassa­r, como referirá. De uma penada, o discurso que acompanha este novo romance seduz os leitores com a promessa de um retorno ao tema que o imortalizo­u, num tempo em que o novo amigo José Cardoso Pires era um exemplo da escrita e o futuro Nobel José Saramago estava a despontar para ensombrar toda a classe de escritores por décadas. Uma catalogaçã­o que o autor não aceita, fazendo questão de referir que fora de Portugal “nenhum país me associa a um escritor da guerra”.

A mensagem que António Lobo Antunes escolheu para ajudar a promoção do seu novo livro tem estado muito presente em entrevista­s recentes, diminuindo-se essa carga de pesadelo noturno nesta para evitar (re)repetições, no entanto não se deixa de a registar porque permite entender a origem desta obra. Afinal, como se perceberá, a “África portuguesa” está no sangue do autor e, mesmo reinventan­do o argumento desta vez, o leitor vai senti-la bastante presente nesta narrativa.

Quanto a Até Que as Pedras se Tornem mais Leves que a Água, há que dizer que só não se lê de um fôlego porque tem 443 páginas e a história – desta vez existe uma história – é reelaborad­a até que, parafrasea­ndo o título, as pedras se tornem água de tanto serem moídas e o tema fique esgotado. Não será a obra-prima como ainda é, por exemplo, As Naus, mas tem a vantagem de regressar à literatura sobre a Guerra Colonial. O que faz falta, porque os escritores portuguese­s tem sido pouco esforçados no tema Guerra Colonial.

A grande novidade é ter logo de entrada uma “sinopse” de duas páginas que explica ao que se vai neste livro. No entanto, talvez não seja este o livro que levará a Academia Sueca a conceder finalmente o almejado segundo Prémio Nobel para a língua portuguesa. A entrevista começa com uma pergunta do próprio escritor: chegou ao fim disso [do romance]? Sim, li princípio, meio e fim... Há duas frases que resumem – ou não – o livro: “Como era África, pai?” e “quase não ficou nada na memória”. É verdade? Não sei se é verdade porque ficou-lhe tanta coisa na memória... É o que transparec­e. Há muitas coisas que esqueci e outras que fiz o possível por esquecer... A escrita foi terrível porque as minhas noites passaram a ser horríveis. Acordava a meio da noite a exigir uma arma e depois nem sabia onde estava e ficava com medo de mim. Cheguei a andar de gatas e a dar por mim à volta da cama de madrugada porque estavam a cair [disparos]... Nunca tinha tido isto desta maneira. Foi tão intenso escrever aquilo. É dedicado a dois camaradas [Zé Luís e Zé Jorge], oficiais espantosos, de uma grande humildade e coragem. Os portuguese­s são extraordin­ários! Lembrome de um oficial cubano que nunca tinha visto soldados como os portuguese­s. Rapazes. É engraçado, nunca ouvi a pa-

lavra coragem e quando falavam de um homem corajoso nunca diziam assim: era um homem duro. O alferes Zé Luís era um homem duro, o maior elogio que se podia ouvir.Vi só um ato horrível de cobardia, mas esse era um cobarde. Essa caracteriz­ação de cobarde aparece uma vez no livro. Não podia deixar de o registar? Acho que não falei nesse rapaz. Esse episódio deve ser o de um oficial que se meteu debaixo da viatura e aquilo ficou sem comando – ele era cobarde, mas também... Ontem fui ao médico, que me falou do final do meu irmão João, que sabia que ia morrer. E disse “pois, mas tenho umas coisas para escrever”... Ele veio aqui despedir-se de mim e nunca usou a palavra morte. Nunca. Uma valentia! O espetáculo da cobardia é nojento, mijam-se. Estou a lembrar-me do segundo comandante a tirá-lo debaixo da Berliet ao pontapé e ele a chorar e a borrar-se e os rapazes ficaram sem comando. Não gosta de usar a palavra cobarde? Não gosto e eu tinha medo que me fartava. Como disfarçava. Ou não disfarçava? Tinha muito medo antes de começarem as castanhas. Éramos bombardead­os a partir da pista de aviação, começava com aquilo que os soldados chamavam a “costureiri­nha” – uma metralhado­ra tac tac tac – e depois vinham os morteiros e era um descanso porque a tensão desapareci­a. Mas lembro-me de o Ernesto Melo Antunes andar com uma lâmpada no meio daquilo e eu uma vez dizer-lhe “ó Ernesto, assim é um alvo muito fácil”. E ele fez um silêncio e respondeu: “Sabes, é que às vezes apetecia-me morrer.” Lembro-me de estar no aquartelam­ento e começamos a receber umas chamadas de rádio desesperad­as de um pelotão que estava a ser atacado e este gajo mete-se numa Mercedes com meia dúzia de rapazes e vai lá. É de uma coragem admirável! Portanto, todos os dias tinha exemplos de dignidade, mas acho que no livro está referido um homem que agarrava nas prisioneir­as novas, miúdas às vezes, e de pé em cima do caixote... Foi o único que eu vi, quando contei ao capitão, o Ernesto disse: “Devias-me ter dito isso.” Não sei porque é que o livro saiu assim. Eu não queria fazer um livro sobre a guerra, porque isso não é, mas sobre a condição humana numa situação limite. Parece-me. São duas vozes constantes, lá e cá... Aparece a vida em Portugal? Sim. Durante um tempo continuei lá e, em certos momentos da minha vida, ainda estou lá. Não queria fazer um livro sobre a guerra de África, não era isso. Interessav­a-me uma relação entre dois homens. Nem sei bem o que me interessav­a, sei lá, exorcizar mais uma vez uma série de fantasmas. Acho que só me tornei homem depois disso. E os soldados tinham 20 anos e já eram homens. Os portuguese­s são admiráveis, gente muito pobre, muitos nunca tinham usado sapatos e não se queixavam de nada. Para uma pessoa que quer escrever é muito importante ter uma experiênci­a assim tão radical, o preço é que é muito alto. Os milhares de pessoas que continuam nas consultas de stress, com problemas de vária ordem. Não me lembro do que escrevi, mas lembro-me de uma carta em que dizia “isto está a dar cabo da minha juventude, da minha idade de homem e vai dar cabo da minha velhice”. Isso aconteceu a todos. Os meus dois avôs eram militares e estiveram na Primeira Guerra Mundial – um foi gaseado – e não falavam disso. Só sei porque a minha mãe deu-me o diário que o pai dela escrevia e que só conheceu muito depois. Ela também nasceu quando o pai estava na guerra. Escrever “quase não me ficou nada na memória” é uma figura de estilo? Às vezes o que fica é uma névoa. Lembro-me de que a alimentaçã­o era péssima mas não sei o que comia. O pão era feito lá, mau, mas o resto é como um sonho. Lembra-se do [Joseph] Conrad quando no Coração das Trevas por várias vezes a pessoa que relata diz “parece que estou a contar um sonho”. E acaba por adquirir as dimensões de um sonho. É engraçado, aparecem os cheiros. Quando acontece o 25 de Abril todo o esforço de guerra torna-se também um sonho. Os soldados vêm-se embora e entregam tudo. Concorda? O 25 de Abril aconteceu porque havia a guerra e os oficiais do quadro permanente estavam dois anos lá, um ano cá e era insuportáv­el. Havia um capitão no meu batalhão que estava na quarta comissão, já não podiam mais. Tinha 44 anos e parecia 70. A cabeça toda branca. O Ernesto estava na terceira comissão. A vida deles foi muito complicada. Não acha que cruzaram os braços demasiado à pressa? Isso não foi decidido pelos militares mas pelos políticos, mas também a partir da altura em que se proclama a independên­cia já ninguém queria combater. Eu vim em março de 1973, estava a começar o Movimento das Forças Armadas, que começou por ser uma reivindica­ção salarial. E a quantidade de sequelas tenebrosas que ficaram, além das coisas físicas, os casamentos. Era muito difícil e ninguém vem de lá bem. Fala de muitos mortos neste livro e de quem mata. Alguma vez matou alguém na guerra? … Vamos passar para a pergunta seguinte... Vamos. Este seu regresso a África é mais autobiográ­fico do que nos primeiros livros? Não, esses são muito maus. Memória de Elefante, os Cus de Judas. Este é um atirador e eu não era, nem tinha de sair para a mata como ele. Correu mais riscos porque eu era médico, embora haja episódios a que assisti. Num romance anterior, Comissão das Lágrimas, trata da Angola pós-25 de Abril... Esse era sobre a questão do MPLA, completame­nte diferente e à qual não assisti. Arranjaram aquele pretexto do Nito Alves. O nome Comissão das Lágrimas foi dado pelo povo angolano, mas não gosto de falar muito nisso porque tenho por uma parte dessas pessoas da comissão muita estima. Angolanos. Era evidente que havia uma grande luta pelo poder por trás daquilo. Isso conheço de ler. Não sei, eu queria fazer boa literatura com este livro – e com os outros.

“Não queria fazer um livro sobre a guerra de África, não era isso. Interessav­a-me uma relação entre dois homens” “Nem sei bem o que me interessav­a, sei lá, exorcizar mais uma vez uma série de fantasmas”

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal