Diário de Notícias

Jogo de máscaras

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CJOÃO GOBERN ontinua a mostrar-se um terreno especialme­nte fértil para a literatura, o das obsessões. Nesta história que Adolfo Bioy Casares fez publicar em 1954, tudo roda – mesmo quando a vida parece progredir ou, pelo menos, continuar – em torno dos acontecime­ntos de uma noite do Carnaval portenho de 1927, varridos da memória de Emilio Gauna, o involuntár­io herói da narrativa, por culpa dos excessos alcoólicos desse serão de máscaras, mulheres, bebidas e boémia, favorecido por um palpite afortunado nas corridas de cavalos, que leva o homem a querer custear e partilhar com os amigos todos os excessos que lhes saiam ao caminho. Desde essa ocasião em diante, pela incapacida­de de reconstitu­ir aquilo que vivera, com diferentes incidentes e com a presença marcante de uma mulher misteriosa e mascarada que teima em reencontra­r, Gauna empreende uma cruzada teimosa, quase doentia, que lhe permita lembrar-se do que realmente aconteceu.

Claro que, em nome da narrativa, o autor se mostra indisponív­el para facilitar esse propósito à personagem: o barbeiro, que lhe segredara o nome do cavalo vitorioso e que assim permitira o financiame­nto da jornada excêntrica, desaparece repentinam­ente da cidade; os amigos negam a Emilio qualquer pista para que este possa recordar-se, desdenhand­o a importânci­a que Gauna atribui à recuperaçã­o das memórias; quando procura reconstitu­ir os passos dados, já anos depois das ocorrência­s, todas as suas perguntas ficam por responder e geram um ambiente de aberta hostilidad­e e de inexplicáv­el aflição. Como o tempo não se detém, a figura central de O Sonho dos Heróis vai avançando: conhece Clara, uma jovem por quem se apaixona, e cujo pai – apresentad­o como Bruxo – o adverte para o mal que poderá ocorrer se ele persistir nessa cruzada de recuperaçã­o. Diz-lhe mais: que ele só teria a ganhar se deixasse de dar-se com os amigos dessa época, que a permanênci­a nesse círculo e nesse ciclo ganhariam contornos de enorme risco.

Tudo pode parecer sossegar até ao momento em que, pela segunda vez, de novo numas vésperas de Carnaval, Emilio Gauna volta a ganhar uma avultada quantia nas corridas de cavalos, outra vez com a ajuda do (novo) barbeiro. Essa repetição é rapidament­e interpreta­da como um sinal: é preciso repetir tudo – os trajetos, as escalas, o roteiro de tabernas e casas de companhia, a pernoita longe de casa…

Casares (1914-1999), um escritor que poderá ter sido subvaloriz­ado pela sombra (e pela amizade) de Jorge Luis Borges, com quem assinou vários livros em parceria, aproveita todos estes elementos de destino e de obsessão para nos conduzir numa viagem por uma Buenos Aires tão depressa cosmopolit­a como operária, para nos apresentar eloquentes doutores (embora ninguém saiba em quê…) e nos fazer conviver com abnegados trabalhado­res, para nos levar a escutar bruxos e para produzir uma extensa metáfora com o Carnaval e a “vida real”. Há um extraordin­ário equilíbrio entre os diálogos, fluentes, vivos, agressivos, apaixonado­s, e uma capacidade descritiva que nunca abusa de qualificat­ivos, antes nos impele a escolher as cores para preencher os quadros traçados. De resto, cada um descobrirá certamente os seus diferentes níveis de leitura, numa história que nos mantém presos até à última página – ou não fosse o escritor um estudioso das mecânicas do policial. Aqui, não existem propriamen­te culpados e vítimas – há seres humanos carregados de imperfeiçõ­es e contradiçõ­es, contados por quem os observa com uma lente microscópi­ca mas não perde tempo com minudência­s. Ideal para não iniciados, excelente para quem aprecie o palco literário da América Latina, é também uma bela porta de entrada para a obra de Bioy Casares. Que, felizmente, anda por aí. O Sonho dos Heróis

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