Diário de Notícias

“O episódio, que gostava de esquecer, assaltou-me a memória ao ouvir o ministro da Saúde falar num país de gente pobre, velha e doente, abandonada e entregue a si própria”

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o que dividiu o país em dois, entre os que estão entregues a si próprios e os que estão sempre garantidos, foi a ausência total de uma política. Quando se governa numa lógica de caixa e sempre a pensar na eleição seguinte, fica-se refém das corporaçõe­s e enfraquece-se o Estado. Um Estado fraco acaba por tornar fracos os que o servem e os que dele necessitam. É por isso que, em Portugal, discute-se mais as carreiras dos professore­s do que o sistema de ensino. É por isso que toda a discussão política em torno da justiça passa pelos direitos dos magistrado­s e funcionári­os judiciais, e não pela forma como a justiça funciona. É isso que explica que, na saúde, se discuta o número de doentes por médico e as horas de trabalho, em vez de estarmos a discutir um Serviço Nacional de Saúde universal e digno. É óbvio que os temas se cruzam, mas, sempre que os governos se dispensam de apresentar e implementa­r uma política para os setores vitais do Estado, acabam por permitir que sejam as corporaçõe­s a definir a agenda. E, quando assim é, voltamos a ter discussões numa lógica de caixa e a pensar nas próximas eleições.

Talvez Adalberto Campos Fernandes pudesse começar por ler as palavras de António Arnaut, considerad­o o pai do Serviço Nacional de Saúde, que dizia ao Público, na semana passada, que “o SNS precisa de passar pelos cuidados intensivos”. A metáfora não tem nada de exagerado, para quem é obrigado a entrar num hospital público ou num centro de saúde.

O país entregue a si próprio é aquele que é obrigado a penar em macas nos corredores frios dos hospitais. A esperar meses por uma cirurgia. A ficar internado em instalaçõe­s decadentes e pouco dignas de um país da Europa do século XXI. O país entregue a si próprio é o que entra num hospital à procura da cura e morre da doença que não tinha – como se viu agora no caso da legionela. O que vê arder casas e familiares, sem que um único bombeiro apareça. O que não encontra justeza na justiça. O país entregue a si próprio é o que paga impostos, mas não tem uma saúde, uma educação e uma justiça gratuitas. O que desconta, mas não tem uma velhice digna. Este é o país entregue a si próprio, que ainda assim sobrevive, apesar ter sido entregue à própria sorte.

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