A cobardia política de Barreto Xavier
OGABRIELA CANAVILHAS jantar dos fundadores daWeb Summit no Panteão Nacional teve pelo menos um mérito: relembrou-nos, para que não nos esqueçamos, que Portugal teve recentemente um governo cuja política cultural foi movida pela visão mais mercantilista e intervencionista de que há memória na democracia portuguesa. Lembremo-nos das exposições no Palácio da Ajuda com produção privada, a interferência pessoal dos governantes nas escolhas de representação de Estado em bienais internacionais, a tentativa de alienação de bens culturais para benefício da banca, o favorecimento a particulares – como aconteceu com Miguel Pais do Amaral, que obteve autorização para vender em Paris por cinco milhões de dólares um quadro de Crivelli que estava proibido de sair de Portugal (e que, por causa dessa limitação o tinha adquirido por um valor irrisório) –, entre outros exemplos de sobreposição do interesse privado ao interesse público.
O despacho 8356/2014, assinado pelo ex-secretário de estado Barreto Xavier, enquadra-se por inteiro et ad nauseam nesta postura. Há bens valiosos? Há que os rentabilizar para benefício de uns e outros, mesmo que para isso sejam cometidos crimes e irregularidades processuais. Há património? Então há que o pôr a render, mesmo que seja o Panteão Nacional.
A reação do ex-governante às reações públicas de rejeição daquele local simbólico como espaço para festas privadas definem o perfil do irresponsável e da dissimulação: foi pelo punho de Barreto Xavier que o Panteão Nacional passou a integrar a lista dos monumentos passíveis de serem alugados para eventos privados. Nada que ele possa argumentar agora, perante a comoção publica, apaga este facto. Se o Panteão não estivesse na lista não haveria jantar. E não podia nem devia estar, como é obvio e evidente.
Barreto Xavier dá como exemplo de iniciativas privadas no Panteão, enquadráveis no seu despacho, “uma homenagem à Sophia de Mello Breyner Andresen, ou um encontro de Estado para homenagear os grandes portugueses da Primeira República” (evento privado?), disse ao Observador. Então porque colocou lista de preços para almoços, jantares e cocktails para o Panteão?
A verdade é que Barreto Xavier coloca todos os monumentos, incluindo o Panteão, disponíveis para festas. Qualquer recusa da tutela obrigaria a uma fundamentação, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º: “Serão rejeitados os pedidos que colidam com a dignidade dos Monumentos”. Pergunto: quais os jantares, almoços e cocktails que não ofendem a dignidade do Panteão? Todos ofendem.
Sendo eu absolutamente contra o aluguer do Panteão para eventos privados, também me pergunto sobre qual a fundamentação da DGPC para a recusa deste jantar junto dos fundadores e convidados daWeb Summit (depois de no mesmo local já se terem realizado outros jantares e estando o despacho em vigor), sendo esta organização responsável pelo mais importante evento do mundo da sua área, na qual participaram em Lisboa o secretário-geral das Nações Unidas, o Presidente da República, o primeiro-ministro, comissários europeus, Al Gore e uma lista infindável de personalidades políticas e culturais de primeiro plano de todo o mundo. Faltou à DGPC nesse momento decisivo a tomada de posição que faria a diferença, mas os patamares de responsabilidade nunca são estanques.
A “cobardia política” de que o ex-secretário de Estado acusa António Costa sobressai no próprio Barreto Xavier por não ter sabido, humildemente, reconhecer o erro da inclusão do Panteão na sua lista de mercantilização da cultura e por não assumir que este jantar tinha, exatamente, o perfil de evento que o seu despacho prevê como enquadrável.
O mais importante agora é retirar o Panteão da lista dos espaços museológicos disponíveis para alugueres, mas também é necessário manter a memória viva sobre o período nefasto para a cultura em Portugal que se viveu com Barreto Xavier, para não repetirmos os muitos erros que foram cometidos.