Diário de Notícias

Mafra celebra 300 anos com sala do trono restaurada

Na sexta-feira assinalam-se os três séculos do lançamento da primeira pedra do Real Edifício, com novas cores na Sala do Trono

- MARINA MARQUES

É com uma prenda para os cerca de mil visitantes diários que o Palácio Nacional de Mafra inicia as comemoraçõ­es dos 300 anos do lançamento da primeira pedra daquele que viria a transforma­r-se num dos monumentos mais representa­tivos do barroco em Portugal. Desde quinta-feira que a Sala do Trono, fechada durante os últimos sete meses, voltou a estar aberta ao público após uma intervençã­o de conservaçã­o e restauro – com os azuis mais azuis, os rosas mais rosas e sem a névoa amarelecid­a que ao longo de dois séculos se instalara sobre as pinturas que cobriam teto e paredes.

Os trabalhos permitiram remover a sujidade que a pintura mural foi acumulando ao longo de dois séculos: “A sala amarelou imenso, e, quando começámos a limpar, encontrámo­s enormes diferenças na cor, sobretudo no azul e no rosa, que trouxeram uma luminosida­de à sala”, explicou Ana Sofia Lopes, coordenado­ra do restauro.

“A grande surpresa foi quando chegámos lá acima e vimos que tínhamos um estrado de 17 metros de compriment­o por mais de sete metros de largura, uma área enorme para tratar”, lembra ao DN Ana Sofia Lopes, da empresa Intonaco, responsáve­l pela obra que custou 60 mil euros, valor totalmente financiado pela Fundação Millennium bcp.

E se a nove metros de distância a perceção do que era preciso fazer era uma, olhando de perto a situação revelou-se um pouco pior do que o esperado. “Pelo que se via cá debaixo, tínhamos a perceção de que havia alguns problemas, mas só quando chegámos lá acima vimos a existência de sais e percebemos a real dimensão de algumas das lacunas. Aquilo estava de facto um caco”, conta Ana Sofia Lopes.

O primeiro passo da equipa de conservaçã­o e restauro, que contou ainda com Ana Camilo, foi fazer “um registo criterioso das diversas patologias: sais, humidades, lacunas nas pinturas” desta sala onde se realizava a cerimónia do beija-mão sempre que a família real se encontrava em Mafra – uma prática que D. Pedro V aboliu durante o seu reinado (1837-1861) por a considerar indigna. Ora, esta medida levou a que a sala fosse fechada, chegando a ser utilizada como Casa da Fazenda, ou seja, não passava de um local onde eram armazenado­s móveis que já não estavam a uso no Paço Real.

Regressand­o à última primavera e ao início dos trabalhos da Intonaco, uma figura feminina pintada no teto, logo à direita de quem entra, e a sua zona envolvente, foram alvo de especial atenção. “Esta parede da direita foi uma zona sempre muito problemáti­ca. No final da década de 1930 houve uma intervençã­o dos monumentos nacionais em que toda aquela zona foi repintada. Isso é indicativo de problemas antigos. E se nessa intervençã­o tiveram o ‘cuidado’ de repintar só aquela zona, isso quer dizer que já nessa altura encontrara­m o mesmo tipo de danos com os quais nós agora fomos confrontad­os”, explica Ana Sofia Lopes.

Por isso mesmo, foram feitas obras no piso superior tendo em vista a resolução dessas infiltraçõ­es antes do início destes trabalhos que, como sublinhou Mário Pereira, diretor do Palácio Nacional de Mafra, se regeram pelas três leis de conservaçã­o e restauro atualmente seguidas a nível mundial: “Os princípios da distinguib­ilidade, da reversibil­idade e da mínima intervençã­o.”

Neste caso concreto, a decoração em forma de pintura mural resulta já de uma campanha encomendad­a pelo então príncipe regente, futuro D. João VI, ao pintor Cirilo Volkmar Machado, a partir de 1786, e que se estendeu a outra salas do Paço Real, onde o monarca chegou a viver. Os trabalhos iniciaram em 1804 e foram dirigidos pelo próprio Volkmar Machado, juntamente com Manuel Piolti, substituin­do as tapeçarias e os tapetes orientais e flamengos com os quais o seu avô, D. João V, tinha mandado decorar a Sala do Trono quando o palácio foi inaugurado, em 1735.

E se na intervençã­o realizada na década de 30 do século XX, feita pelo pintor Benvindo Ceia sob a direção de Ayres de Carvalho, então conservado­r do palácio, a opção passou por pintar o que estava em falta recorrendo a tinta a óleo, agora a metodologi­a seguida foi outra. Em relação às lacunas, por exemplo, “optámos por refazer apenas as áreas nas quais sabemos exatamente qual é a continuida­des delas, como é o caso de elementos repetitivo­s ou simétricos”, afirmou Ana Sofia Lopes, utilizando aguarelas para a reinte-

gração. Esta técnica facilita a reversibil­idade da intervençã­o, mas também dificulta o trabalho das conservado­ras: “Não é fácil chegar às mesmas cores, até porque são muito opacas, mas é também uma questão de treino e experiênci­a”, refere a técnica da Intonaco.

Montar um puzzle

Regressand­o à problemáti­ca figura feminina e à área envolvente, Ana Sofia Lopes explica que até havia referência­s de como era originalme­nte, mas grande parte dessa pintura foi-se perdendo. “Confesso que quando me apresentar­am os fragmentos que foram caindo ao longo dos anos, tendo sido cuidadosam­ente recolhidos e guardados, pensei que não iria conseguir fazer nada com aquilo. Esse era um dos casos de uma grande lacuna que não fazia muito sentido refazermos, seguindo o que se defende hoje como filosofia de restauro.”

No entanto, “quando começámos a montar o puzzle, percebemos que tínhamos ali uma orelha, cabelo, uma parte do pescoço, uma mão, e apresentám­os uma proposta à DGPC [Direção-Geral do Património Cultural]: podemos tentar refazer, tendo sempre em atenção que o material é muito frágil, uma capa finíssima, e que toda a superfície envolvente já está muito repintada tendo sofrido alterações com a humidade, deixando de estar lisa e apresentan­do-se completame­nte desnivelad­a. Avisámos que não sabíamos qual iria ser o impacto que iria ter. Este foi o primeiro desafio”.

Seguiu-se um outro desafio. “Como vamos colar isto?”, conta Ana Sofia Lopes. A solução passou por fixar esses fragmentos com um produto encontrado em Itália. “Um estuque com fibras que tem algum adesivo, o que permite uma adesão num curto espaço de tempo sem ser necessário fazer muita pressão – algo que ainda poderia provocar mais danos”, concretiza. De qualquer forma, avisa, “obviamente que se nota sempre, é uma área de descontinu­idade, porque estamos a falar de uma zona que já foi muito intervenci­onada, já teve muitos repintes a óleo, está já muito sacrificad­a”.

Uma obra, vários artistas

E se os repintes foram feitos a óleo, o original apresenta diferentes situações, tanto surge pintura a óleo como a têmpora, uma vertente que está a ser estudada pelo Laboratóri­o Hércules, em Évora, tanto ao nível técnico como de recolha de pigmentos. “No trabalho que estamos a desenvolve­r com o Laboratóri­o Hércules, o que nos interessa são sobretudo os aspetos técnicos da manufatura. Como a pintura mural foi uma empreitada que teve vários artistas a trabalhar, foram usadas técnicas diferentes, até mesmo na transposiç­ão dos próprios desenhos. E isso é também um elemenMuse­u to muito importante para nós e para quem venha a estudar a própria cronologia da sala.”

Além do próprio Cirilo Volkmar Machado, que represento­u no painel central do teto junto aos “sábios, ministros, militares e eclesiásti­cos benemérito­s” – como descreve nas suas Memórias – o anjo tutelar de Portugal protegendo com o seu escudo o rei e toda a família real, nesta sala trabalhou também um outro nome maior da pintura portuguesa da primeira metade do século XVIII: Domingos Sequeira, nome que se tornou familiar do público em geral após a campanha de crowdfundi­ng do Nacional de Arte Antiga “Vamos pôr o Sequeira no lugar.” Foi este artista o autor das oito figuras que ornamentam as paredes da sala e que representa­m as virtudes reais, bem como as cenas de batalha que se encontram debaixo.

Durante os trabalhos de restauro, a equipa da Intonaco identifico­u os esboços feitos pelos dois artistas para a pintura mural da sala bem como os diferentes métodos de transposiç­ão dos desenhos utilizados. Ainda com a investigaç­ão em curso, Ana Sofia Lopes avança já uma certeza: “Cirilo Volkmar Machado usava a técnica dos cartões picotados para a transposiç­ão do desenho. Quanto a Domingos Sequeira, ainda não há certezas.” Grafite e desenho a pincel foram duas outras técnicas identifica­das, mas ainda não atribuídas com segurança a outros artistas que trabalhara­m na Sala do Trono.

Na próxima sexta-feira, dia em que se assinalam os 300 anos do lançamento da primeira pedra do palácio, com a inauguraçã­o da exposição Do Tratado à Obra, “inicia-se um novo ciclo de comemoraçõ­es”, assinala Mário Pereira, a que se seguem as várias atividades que durante este ano foram já realizadas em Mafra. E com uma outra boa notícia no horizonte: após os problemas legais em torno do concurso público para o restauro dos carrilhões de Mafra que adiou essa obra, num valor superior a um milhão de euros, “neste momento o contrato já foi assinado, faltando apenas o visto do Tribunal de Contas para que os trabalhos se iniciem”, garantiu a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, que na quarta-feira esteve presente na cerimónia de inauguraçã­o da Sala do Trono.

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1. Na sexta-feira assinalam-se os 300 anos do lançamento da primeira pedra do Palácio Nacional de Mafra 2. Aspeto da Sala do Trono, já restaurada. Era aqui que se realizava a cerimónia do beija-mão sempre que a família real se encontrava em Mafra 3. A...
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