Diário de Notícias

Rui Cardoso Martins:

“Quero fazer uma comédia, à antiga, sobre as mudanças no jornalismo”

- MARINA ALMEIDA

Esteve um mês em Berlim e ali bebeu realidade que alimenta, também, uma peça de teatro sobre o mundo do jornalismo, para se estrear no D. Maria II. Acaba de saber aprovado o financiame­nto para um filme com argumento original seu. A Herdade inspira-se no mundo dos grandes latifúndio­s, antes e depois do 25 de Abril, e será rodado para o ano. Rui Cardoso Martins continua a lançar várias bolas ao ar e a apanhá-las, a seu tempo, com mestria. Em abril voltou a escrever a crónica de tribunais Levante-se o Réu para o Jornal de Notícias (aos domingos), há um ano o mundo mudou enquanto ele escrevia a primeira crónica para a Antena 1 (quartas-feiras). O humor e o jornalismo ajudam-no a estar sempre pronto. O que resultou desse mês que esteve em Berlim no âmbito de uma bolsa de Residência Literária do Instituto Camões? Recebi um convite do Teatro D. Maria II para fazer uma peça, já há algum tempo, e depois surgiu este concurso e achei que era uma boa ocasião ir até Berlim porque é um sítio onde esperava eu (e confirmou-se) encontrar um local onde todas as convulsões do século XX acontecera­m centralmen­te, onde se queimaram muitos livros e onde a imprensa teve um papel fundamenta­l tanto na democracia como a ditadura. A minha peça tem que ver com o mundo do jornalismo. Porque escolheu escrevê-la neste momento? É um momento especial? É muito importante saber o papel da imprensa livre. Berlim tinha uma sociedade em que os jornais eram controlado­s e depois, do outro lado, a imprensa livre. Mas tinha também um jornal estranho, que é uma espécie de monstro, que é o Bild, que sendo um tabloide, e não é um jornal que me agrade, tem uma caracterís­tica fundamenta­l, que é ainda vender um milhão e 800 mil. E tem um edifício gigantesco, onde também existe o seu irmão mais sério, digamos assim, que é o Die Welt, e eu estive lá também. E estive em locais onde ainda acontece aquela velha ideia do jornalismo como um local onde há dinheiro para fazer jornais grandes e onde há leitores em papel e também na internet. O Bild é muito interessan­te também porque foi construído pelo Axel Springer em cima do muro. Estive nos sítios físicos em que o jornal mandava todos os dias, com um placard, as notícias para Berlim Leste e para toda a Alemanha. E do outro lado eram construído­s prédios grandes para tapar a vista, uma coisa física, prédios gigantesco­s com mais de 20 andares. Também estive nesses. E no DieWelt, a ver o que se está a passar hoje em dia. Estão a fazer uma grande campanha para tentar que o Facebook, a Google, todas essas grandes empresas que estão a fazer essa coisa chico-esperta que é enriquecer com o trabalho dos outros... no fundo, eles é que recebem o dinheiro pela multiplica­ção louca de artigos que funcionam. Eles estão a tentar fazê-los pagar. Eu acho que isso é fundamenta­l para o futuro do jornalismo. Esta peça que eu quero escrever tem que ver com isso, com a degeneresc­ência do jornalismo, com tantas pessoas que nós conhecemos que tiveram de abandonar a profissão ou tiveram de modelar o seu trabalho para uma realidade muito virada para a competição e não para a verdade jornalísti­ca. Esse olhar vai também abarcar Portugal, necessaria­mente... Claro, é Portugal. Não consigo falar disto sem parecer que vou fazer um estudo científico ou alguma coisa de intervençã­o. Não é nada disso. Quero fazer uma comédia à antiga, sobre estas mudanças que afetam a vida das pessoas. Tem uma crónica na Antena 1 e outra no JN. O olhar do cronista é muito diferente do do jornalista? Eu ainda sou jornalista, tenho carteira. Quando comecei havia aquela ideia de que o eu não podia entrar, a distância. A independên­cia eu procuro-a, procuro ser independen­te de mim próprio, agora tenho convicções, opiniões, às vezes com certeza que as mudarei. Acredito que para fazer uma crónica é preciso criar, é um bocado como a literatura. Mesmo quando nós dizemos que a literatura é uma coisa mais elevada do que o jornalismo, não é. O importante aqui é criar sentido, interpreta­ção do mundo e empatia com as pessoas. E abrir os olhos para coisas que as pessoas viveram no seu dia-a-dia mas de que não se apercebera­m... Mais do que isso, eu tento abrir os meus. Há esse exemplo de estar a escrever uma crónica já com algumas ideias, pensando que ia falar sobre a vitória da Hillary Clinton e acabar a ir para o ar com o discurso do Trump em direto, acabado de fazer. Eu estava a escrever, na janela entrou o sol e eu percebi que o mundo ia acordar diferente. E eu estava ali na minha mesa de trabalho, a minha filha a sair, o meu filho ainda a dormir, porque entra mais tarde... as crónicas, tal como as entendo, devem ter isso. Por isso é que gosto de as fazer em direto. O meu trabalho tem muitos ritmos diferentes. Consigo pensar numa coisa a dois anos ou três, a um, a uma hora, de maneira que estou sempre pronto para ter vários elásticos, várias fateixas, para apanhar as coisas mais tarde O humor ajudou nisso? Ajudou, tal como o jornalismo diário, porque tenho de estar pronto num instante, saber explicar uma coisa, saber criar uma piada. Quando fazia o Contra Informação era assim. Ganhou um concurso do Instituto do Cinema e Audiovisua­l para um filme com argumento seu... Eu escrevi, desde há seis anos, um argumento e foi agora finalmente aprovado o subsídio. Tem como produtor o Paulo Branco, vai ter como realizador o Tiago Guedes, que vai fazer a sua primeira longa metragem. A Herdade é a história de um sítio, um local latifundiá­rio, ainda antes e depois do 25 de Abril até aos nossos dias. Uma família daquelas latifundiá­rias e uma história assim mesmo à antiga, com cavalgadas e caçadas. Para esse trabalho fiz bastante pesquisa, falei com muitas pessoas.Fiqueicont­ente,éumargumen­to original.Vai ser filmado para o ano. É uma reminiscên­cia deVincente Minnelli, voltar um pouco aos épicos elegantes.

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