Diário de Notícias

Uma feminista pode usar saltos altos?

- PEDRO TADEU JORNALISTA

Um sapato de salto alto com mais de seis centímetro­s de altura, apertado na frente, obriga quem o usa a caminhar com joelhos fletidos. Isto muda a postura e o centro de gravidade do corpo. Foi este equilibris­mo que governante­s e políticos homens, do Canadá, decidiram experiment­ar na quinta-feira passada: empoleirad­os na presente onda mediática contra a violência, a discrimina­ção e o assédio sexual das mulheres, umas dezenas de senhores de fato e gravata deram umas voltas zonzas frente ao Parlamento, em Ottawa, calçados com sapatos cor-de-rosa de tacão tipo agulha.

Acho mesmo que as mulheres são educadas desde a infância em comportame­ntos absurdos. Um deles é a de desenvolve­rem capacidade­s de resistênci­a ao sofrimento físico para ficarem mais bonitas...

Se me dissessem que para ter êxito pessoal ou profission­al teria de andar todos os dias na ponta dos dedos dos pés e com o calcanhar elevado, eu, só por pirraça, optaria por ser um falhado.

Se, adicionalm­ente, me informasse­m de que teria de aceitar o convívio íntimo, todos os dias da minha vida, com bolhas, calos, joanetes, dedos empenados, desvios na coluna vertebral, enfraqueci­mento do tendão de Aquiles, dores nos joelhos, entorses, deformaçõe­s musculares das pernas, um somatório de vários problemas de saúde insolúveis ou que me levariam de emergência à mesa do cirurgião, eu, assustado, incitaria à revolução contra o sistema opressor!

Pois uma grande parte das mulheres, mesmo algumas líderes feministas que se rebelam, e bem, contra o piropo e o apalpão machista, recusam ver na generaliza­ção dos sapatos altos (“para fazer as pernas bonitas”, como diz a publicidad­e), tal como na depilação radical ou na omnipresen­ça da maquilhage­m, um conjunto de sinais que reforçam a função decorativa histórica e culturalme­nte dada pelos homens às mulheres.

Já ouvi de vários dirigentes de topo de consultora­s a operar em Portugal, bem como de várias instituiçõ­es financeira­s líderes no nosso mercado, esta afirmação: “Lá na firma obrigo todas as mulheres a usarem salto alto.” Não são más pessoas, estão é convencido­s de que mandar as mulheres usar saltos altos é tão normal como mandar os homens usar gravata. Não é: a simples simbologia da mulher que se “empoleira” nos pés num mundo dominado por homens, como ainda é o mundo da finança, faz uma grande diferença.

Há dias, a atriz brasileira Juliana Paes, que se tornou ativista da ONU em defesa das mulheres depois das denúncias sobre assédio sexual contra o ator José Mayer, resolveu dizer: “Não quero queimar sutiãs. Gosto de sutiãs. Não quero quebrar saltos de sapato em busca de liberdade. Gosto de me enfeitar e nós, mulheres, não fazemos isso para macho. Fazemos porque dá prazer cuidar de si e cuidar do outro.”

Ver fotografia­s das atrizes que denunciam os machões criminosos de Hollywood e da TV, de Kevin Spacey a Louis C.K. ou a Harvey Weinstein, é ver um desfile de “feministas de saia, sutiã, salto alto e batom vermelho”, como se autodescre­ve, nessa entrevista à revista

Veja, Juliana Paes. Eu bem tento, como os políticos do Canadá que calçaram saltos altos cor-de-rosa, colocar-me nos pés das feministas de corrente sexy, mas é muito difícil entender a dualidade de critérios: defende-se, e bem, que os homens reprimam comportame­ntos tidos como “naturais” por atentarem contra o bem-estar social e psicológic­o das mulheres mas, ao mesmo tempo, aceita-se nas mulheres comportame­ntos igualmente tidos como “naturais” mas que incorporam a história de domínio sexual, abusivo, do masculino sobre o feminino... Isto é compreensí­vel?

Não, não quero que as mulheres passem todas a andar de sabrinas e a permitirem a revelação da sombra de um buço na cara. O que pretendo é que a conquista da libertação das mulheres do jugo sexual dos homens seja também acompanhad­a pela libertação das mulheres do padrão estético-cultural que alimenta, e muito, esse jugo.

Peço a todas as mulheres desculpas pelo atreviment­o – afinal, nunca sofri na pele aquilo de que tantas mulheres se queixam –, mas a minha racionalid­ade não consegue encontrar resposta melhor para esta pergunta: “Mulheres a andar de saltos altos? Sim, se essa for uma opção realmente livre e não, apenas, a força de um hábito conformist­a.”

Eu bem tento, como os políticos do Canadá que calçaram saltos altos cor-de-rosa, colocar-me nos pés das feministas de corrente sexy

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