Uma feminista pode usar saltos altos?
Um sapato de salto alto com mais de seis centímetros de altura, apertado na frente, obriga quem o usa a caminhar com joelhos fletidos. Isto muda a postura e o centro de gravidade do corpo. Foi este equilibrismo que governantes e políticos homens, do Canadá, decidiram experimentar na quinta-feira passada: empoleirados na presente onda mediática contra a violência, a discriminação e o assédio sexual das mulheres, umas dezenas de senhores de fato e gravata deram umas voltas zonzas frente ao Parlamento, em Ottawa, calçados com sapatos cor-de-rosa de tacão tipo agulha.
Acho mesmo que as mulheres são educadas desde a infância em comportamentos absurdos. Um deles é a de desenvolverem capacidades de resistência ao sofrimento físico para ficarem mais bonitas...
Se me dissessem que para ter êxito pessoal ou profissional teria de andar todos os dias na ponta dos dedos dos pés e com o calcanhar elevado, eu, só por pirraça, optaria por ser um falhado.
Se, adicionalmente, me informassem de que teria de aceitar o convívio íntimo, todos os dias da minha vida, com bolhas, calos, joanetes, dedos empenados, desvios na coluna vertebral, enfraquecimento do tendão de Aquiles, dores nos joelhos, entorses, deformações musculares das pernas, um somatório de vários problemas de saúde insolúveis ou que me levariam de emergência à mesa do cirurgião, eu, assustado, incitaria à revolução contra o sistema opressor!
Pois uma grande parte das mulheres, mesmo algumas líderes feministas que se rebelam, e bem, contra o piropo e o apalpão machista, recusam ver na generalização dos sapatos altos (“para fazer as pernas bonitas”, como diz a publicidade), tal como na depilação radical ou na omnipresença da maquilhagem, um conjunto de sinais que reforçam a função decorativa histórica e culturalmente dada pelos homens às mulheres.
Já ouvi de vários dirigentes de topo de consultoras a operar em Portugal, bem como de várias instituições financeiras líderes no nosso mercado, esta afirmação: “Lá na firma obrigo todas as mulheres a usarem salto alto.” Não são más pessoas, estão é convencidos de que mandar as mulheres usar saltos altos é tão normal como mandar os homens usar gravata. Não é: a simples simbologia da mulher que se “empoleira” nos pés num mundo dominado por homens, como ainda é o mundo da finança, faz uma grande diferença.
Há dias, a atriz brasileira Juliana Paes, que se tornou ativista da ONU em defesa das mulheres depois das denúncias sobre assédio sexual contra o ator José Mayer, resolveu dizer: “Não quero queimar sutiãs. Gosto de sutiãs. Não quero quebrar saltos de sapato em busca de liberdade. Gosto de me enfeitar e nós, mulheres, não fazemos isso para macho. Fazemos porque dá prazer cuidar de si e cuidar do outro.”
Ver fotografias das atrizes que denunciam os machões criminosos de Hollywood e da TV, de Kevin Spacey a Louis C.K. ou a Harvey Weinstein, é ver um desfile de “feministas de saia, sutiã, salto alto e batom vermelho”, como se autodescreve, nessa entrevista à revista
Veja, Juliana Paes. Eu bem tento, como os políticos do Canadá que calçaram saltos altos cor-de-rosa, colocar-me nos pés das feministas de corrente sexy, mas é muito difícil entender a dualidade de critérios: defende-se, e bem, que os homens reprimam comportamentos tidos como “naturais” por atentarem contra o bem-estar social e psicológico das mulheres mas, ao mesmo tempo, aceita-se nas mulheres comportamentos igualmente tidos como “naturais” mas que incorporam a história de domínio sexual, abusivo, do masculino sobre o feminino... Isto é compreensível?
Não, não quero que as mulheres passem todas a andar de sabrinas e a permitirem a revelação da sombra de um buço na cara. O que pretendo é que a conquista da libertação das mulheres do jugo sexual dos homens seja também acompanhada pela libertação das mulheres do padrão estético-cultural que alimenta, e muito, esse jugo.
Peço a todas as mulheres desculpas pelo atrevimento – afinal, nunca sofri na pele aquilo de que tantas mulheres se queixam –, mas a minha racionalidade não consegue encontrar resposta melhor para esta pergunta: “Mulheres a andar de saltos altos? Sim, se essa for uma opção realmente livre e não, apenas, a força de um hábito conformista.”
Eu bem tento, como os políticos do Canadá que calçaram saltos altos cor-de-rosa, colocar-me nos pés das feministas de corrente sexy