Diário de Notícias

A Europa do futuro

- POR NUNO GAROUPA

Portugal parece completame­nte imune as estas tendências europeias. Não há partidos novos. Não há nenhuma força política que defenda explicitam­ente os méritos da democracia iliberal. E, contudo, veremos como acaba a profunda crise da direita portuguesa

Enquanto a Europa continua perdida no seu próprio labirinto, pouco a pouco, um novo fenómeno vai surgindo no seu seio: as democracia­s iliberais. Primeiro foi a Hungria, com Viktor Orbán e o seu partido Fidesz. Duas maiorias absolutas, em 2010 e 2014, permitiram um novo modelo que, na célebre tese de Fareed Zakaria, combina elementos da tradiciona­l democracia liberal com um autoritari­smo do poder executivo. Ao contrário das velhas ditaduras comunistas ou fascistas, a democracia iliberal não impõe um regime de partido único, não elimina eleições legislativ­as, não acaba com o poder judicial ou com os instrument­os habituais do Estado de direito, como a fiscalizaç­ão da constituci­onalidade, não proíbe a comunicaçã­o social privada. Mas sobre todos estes elementos, a democracia iliberal concentra o poder político numa figura forte e carismátic­a que limita efetivamen­te os freios e os “contrafrei­os” da democracia liberal. Trata-se de uma democracia musculada, assente na ideia de que apenas com uma liderança forte é possível crescer economicam­ente e defender os interesses do país. Consequent­emente, esse líder responde perante o eleitorado esmagando a oposição cada quatro anos em eleições aparenteme­nte livres, mas efetivamen­te condiciona­das. Aliás, o líder sempre expressa que o seu mandato deriva de um apoio eleitoral significat­ivo e não de qualquer golpe antidemocr­ático.

O ideal da democracia iliberal sempre foi Singapura, um país com uma economia pujante, os melhores tribunais do mundo, um avanço tecnológic­o importante, mas com uma realidade política de cariz autoritári­o. Quando Orbán, em 2014, definiu o regime húngaro como um processo dinâmico com vista a consolidar uma democracia iliberal no futuro, ele estava bastante isolado na Europa. Contudo, ao contrário da crise austríaca de 1999-2000, quando a direita formou uma coligação com a “nova direita”, não houve qualquer repercussã­o ao nível das instituiçõ­es da União Europeia. Seja porque os socialista­s já não controlam a agenda da União (como em 2000), seja porque a Alemanha não quer incomodar a Hungria, seja porque a União está completame­nte absorvida pela sua estagnação económica, seja porque as instituiçõ­es comunitári­as estão a um nível de disfuncion­alidade sem precedente­s, a verdade é que a de- mocracia iliberal encontrou espaço de aceitação na Europa.

Depois da Hungria veio a Polónia, em 2015. A vitória clara do PiS e a viragem à direita com um extenso programa de reformas institucio­nais (incluindo mudanças no poder judicial e no Tribunal Constituci­onal) confirmou que a Polónia entrava também no trilho das democracia­s iliberais. Mais recentemen­te, tivemos o caso da República Checa, com a vitória de Andrej Babiš (conhecido como o Donald Trump checo) há duas semanas. Na Eslováquia, a “nova direita” entrou no Parlamento pela primeira vez no ano passado, com 9%. Neste momento, as sondagens apontam para que seja já o segundo partido. Mas não é só na Europa Central que a democracia iliberal vai fazendo o seu caminho, país a país. Em França, a FN perdeu o assalto à presidênci­a há seis meses, mas continua de boa saúde. Na Áustria, o partido do falecido Haider acaba de obter um excelente resultado e vai estar no próximo governo. Na Alemanha, a “nova direita” da AfD conseguiu 13% em setembro último.

O paradigma da democracia iliberal encontrou, pois, terreno fértil na Europa. Possivelme­nte até ao fim da década governará em toda a Europa Central e Oriental (com exceção dos Estados Bálticos). Na Europa Ocidental, estará cada vez mais influente nas instituiçõ­es nacionais de países como a Alemanha, a Áustria ou a França. A este grupo junta-se a Grécia do Syriza, outro modelo de democracia iliberal mas de cor política oposta.

Surpreende­ntemente, a União Europeia comporta-se de forma autista. Por exemplo, discutem-se as reformas sugeridas por Macron, que, evidenteme­nte, não só são completame­nte irrealista­s como alimentam uma e outra vez os partidário­s da democracia iliberal. Por outro lado, tentando a todo custo que a União não se rompa e atordoadas com o brexit, as instituiçõ­es europeias acabam por criar condições muito favoráveis para que as democracia­s iliberais venham a ser quem, na próxima década, realmente decidirá o futuro da Europa.

Uma nota curiosa. Portugal, sempre na sua periferia, o cantinho à beira-mar plantado, parece completame­nte imune as estas tendências europeias. Não há partidos novos. Não há nenhuma força política que defenda explicitam­ente os méritos da democracia iliberal. E, contudo, veremos como acaba a profunda crise da direita portuguesa. A seu tempo.

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