“Ó Álvaro, anda cá ver isto”, dizem os vizinhos de Siza
Exposição. Tratam-no por tu no Bairro da Bouça, um dos quatro projetos de habitação social do arquiteto que estiveram na Bienal de Arquitetura de Veneza e chegam agora ao CCB
“Há uma senhora que diz: ‘Eu gostei muito de o conhecer, ele é uma pessoa como nós.’” Ele é Álvaro Siza Vieira, que no ano passado fez um périplo pela Europa para reencontrar quatro obras suas de habitação social: no Campo di Marte, em Veneza, Schlesisches Tor, em Berlim, no Schilderswijk, em Haia, e no Bairro da Bouça, no Porto. E se para o arquiteto a Bouça foi o início de tudo, foi no Campo di Marte, na vila operária Giudecca, que, no ano passado, tudo desembocou, por mote dos também arquitetos Nuno Grande e Roberto Cremascoli, que contavam a história .
Os dois falavam à entrada da exposição Neighbourhood –Where Álvaro Meets Aldo, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, que mostra os quatro projetos de habitação social, a par das fotografias e vídeos que mostram Siza e os seus “vizinhos”, habitantes daqueles bairros, ao longo desse périplo. Tudo isso esteve em exposição no ano passado na Bienal de Arquitetura de Veneza, na qual Álvaro Siza foi o representante de Portugal e eles os comissários. Foram eles também que persuadiram o arquiteto, prémio Pritzker de 1992, a regressar àqueles bairros e a reencontrar os “vizinhos” que lá deixara há décadas, assim como os novos, que ele ainda não conhecia.
“Qual é o Pritzker que se daria ao trabalho de voltar ao local do crime? Aos lugares que projetou, ouvindo as queixas que os vizinhos fazem, voltando a explicar-lhes outra vez porque desenhou assim, ou pela primeira vez aos novos, e também ouvindo.” Esses “locais de crime” que Nuno Grande referia, e que podem ser revisitados agora até 11 de fevereiro no CCB, estiveram antes expostos numa “obra que não era celebrada, era uma obra esquecida”. Obra – que haveria de fazer as vezes de um pavilhão de Portugal que não existe – projetada por Siza para a Giudecca e cuja construção estava por acabar havia anos. Haveria de ser retomada após a exposição e, adiantou Nuno Grande, “no próximo ano, 19 famílias terão as suas casas”. “Para nós e para o Álvaro Siza esta foi a maior vitória”, remata.
É em parte ali, na Giudecca, que se explica a segunda parte do nome desta exposição: Where Álvaro Meets Aldo. Aldo é o arquiteto Aldo Rossi (1931-1997), também ele parte daquele projeto para o Campo di Marte que envolve ainda os arquitetos Rafael Moneo e Carlo Aymonino. Aos dois une-os isso, uma amizade, e, além de ambos terem sido convidados por Vittorio Gregotti (curiosamente coautor do edifício do CCB) para, em 1976, exporem na mostra Europa-América, une-os também a visão que Rossi expôs no livro A Arquitetura da Cidade e que Siza herdou, como se vê nas obras em exposição: “É uma arquitetura aprendida a olhar para a cidade histórica, que incorpora no seu projeto a cultura e a geografia desse lugar”, afirma Nuno Grande.
Pela lente de Nicolò Galleazi, na “rua” esquerda da exposição, vemos Siza entre os seus vizinhos: um jovem arquiteto que foi surpreen- dido à chegada de casa por ele – “não podem imaginar a alegria”, conta Nuno Grande –, um casal de revolucionários do Bairro da Bouça, uma família islâmica cujos miúdos fizeram cócegas a Siza Vieira. Nas fotografias de Jordi Burch vemos apenas esses vizinhos, nas suas vidas sem Siza, no lugar que Siza projetou para eles as viverem.
Durante a apresentação aos jornalistas, Roberto Cremascoli, descrevendo a forma como Siza falava com os habitantes, comparou-o a “um médico do campo ou um assistente social”. Mais à frente, pedir-lhe-íamos que explicasse.
“Quando falamos disso pegamos numa citação do Pierluigi Nicolin, da revista Lotus: ‘O Álvaro era a única pessoa que ouvia, que sabia ouvir.’ É fundamental ouvir antes de falar. Como sabia ouvir, sabia dar respostas. Tinha uma paciência como poucas pessoas conseguem ter”, conta Cremascoli, que fará a última visita guiada, a 27 de janeiro, depois de Marisa Matias, a 2 de dezembro, ou Ângela Ferreira e Jorge Sampaio, nos dias 13 e 20 de janeiro, entre outros.
Nuno Grande, que fará a primeira a 25 deste mês, intervém: “Há uma história muito engraçada que ele conta no filme da Bouça. Ele estava a explicar a uma assembleia pós-25 de Abril em que estavam praticamente só mulheres, numa noite – foram noites seguidas a explicar o que iam ser as casas –, e ele está a falar do polibã. A maior parte das pessoas só conhecia a banheira, muitas delas nem tinham casa de banho em casa. As senhoras estavam um bocadinho desgostosas, elas queriam era ter uma banheira, mas ele não tinha espaço. Ele estava a explicar, elas estavam chateadas, sempre a ripostar, e de repente avançam dez mulheres com um cobertor para cima dele, e ele pensa: ‘Vão-me matar por causa do polibã.’ Ele estava a falar com um cigarro na mão, nessa altura os arquitetos usavam os cabelos compridos, e estava a queimá-lo. Repare como a tal timidez o leva a pensar que as pessoas estão contra ele. Não: as pessoas percebem. Ele é um arquiteto que sabe explicar a arquitetura.”
Sobre as visitas ao Bairro da Bouça, que em 1976 ficou estagnado com o fim do programa SAAL e só ficaria terminado em 2006, Cremascoli diz que “é mais uma visita à família. Muitos deles dizem: ‘Recebemo-lo como um pai.’” Nuno Grande acrescenta: “Ele vai lá muitas vezes. Já é um vizinho. Tratam-no por tu: ‘Ó Álvaro, anda cá ver isto.’ É um deles. A maior reverência é dos jovens arquitetos que foram para lá viver.”
NEIGHBOURHOOD – WHERE ÁLVARO MEETS ALDO Até 11 de fevereiro na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, em Lisboa Bilhetes: 4 euros com desconto