Diário de Notícias

“Nada justifica que um grupo de pessoas decida a morte de alguém. Sou contra a pena de morte”

- ANA SOUSA DIAS

Acaba de publicar o livro A Luta Armada, em que analisa a violência organizada e em particular a ação dos três grupos ativos em Portugal nos anos anteriores ao 25 de Abril. Inclui entrevista­s a Camilo Mortágua (LUAR), Raimundo Narciso (ARA, do PCP), e Carlos Antunes (PRP/BR). Os filhos de Isabel – Isabel Lindim e Sérgio Antunes – conduzem uma entrevista à mãe. Mas o livro é muito mais. E uma análise aprofundad­a sobre o fenómeno da violência e sobre os movimentos armados no século XX. O que é a violência? Apaixona-me o estudo da violência. Vivemos numa sociedade em que ela existe e pergunto-me se é inerente ao género humano, à nossa natureza, ou se se vai encadeando por motivos circunstan­ciais. É interessan­te perceber que ela surge muitas vezes no confronto individual e que é também uma questão de poder. É o ser masculino, provavelme­nte por ter mais força, que aparece nos relatos da violência ao longo da História. Os sinais de violência de grupo surgem quando a propriedad­e começa a ser organizada, no Neolítico, e é necessário pôr barreiras ao inimigo invasor. A todos os entrevista­dos coloca a questão da violência e todos são convergent­es, não é? Todos respondem que a violência é própria do confronto do ser humano e que em determinad­os momentos é necessária. E quando se fala da violência política, todos dizem que em determinad­os momentos políticos não há outra solução. A questão da luta armada que analisa é a do período final do Estado Novo. Há o reviralho logo a seguir ao golpe militar [28 de maio de 1926] e depois há sempre uma inquietaçã­o política que leva a atos organizado­s. Houve a resistênci­a não armada, contínua e heroica, mas houve também reações organizada­s. No período de Marcelo Caetano viu-se que não havia transição, mudaram os nomes das instituiçõ­es mas mantinha-se o resto, a repressão era violenta. E havia a guerra colonial que, além de ser um problema político, afetava toda a juventude. É extraordin­ário como se fala pouco, mas os jovens de 20 anos iam todos para a guerra. As mães choravam, faziam promessas a Fátima, mas não houve uma reação global, em grupo, das mães. Podemos imaginar o que será um filho de 20 anos partir para o desconheci­do. Muitos morreram, muito ficaram feridos, muitos ficaram com lesões para toda a vida. Foi justo optar pela luta armada? Não tenho a menor dúvida. Era necessário pôr em causa a possibilid­ade de uma transição pacífica do regime para a democracia, para a liberdade. Por outro lado, era necessário combater a guerra colonial. Havia formas políticas de combater, tudo isso enfraqueci­a o regime. Mas era preciso colocar a questão: este regime só cai pela força. E a verdade é que só caiu pela força. Com a proposta de ações armadas, não tínhamos a pretensão, nem a capacidade, para fazer diretament­e cair o regime. Mas um regime como a ditadura portuguesa, se fosse atacado em pontos da sua própria segurança – as forças armadas – era imediatame­nte enfraqueci­do. Foi uma novidade em relação ao regime e penso que foi um contributo importante para o seu enfraqueci­mento e, portanto, para a queda do regime. Todos os entrevista­dos defendem o princípio de não matar. Quando hoje falamos de terrorismo, de atentados, estamos a falar do contrário. O terrorismo é outra coisa, completame­nte diferente. Esse é um tema muito interessan­te e foi uma das razões por que escrevi este livro. Tenho sido acusada de cometer homicídios sem os ter praticado, sendo contra. Eu sou contra a pena de morte e o Carlos Antunes também. Nada justifica que um grupo de pessoas, por mais revolucion­árias e por mais bem intenciona­das que sejam, decida a morte de alguém. Foi assente nas Brigadas, logo no início, que não havia mortes e o mesmo aconteceu na ARA e na LUAR. É excecional nos grupos formados na segunda metade do século XX. Não houve mortes, senão as acidentais. Foi o caso da explosão na Escola da PIDE, uma ação da ARA? Houve um rapaz que mexeu por engano na bomba e morreu, o que causou grande consternaç­ão. E dois camaradas meus morreram ao colocar um engenho. Foram mortes acidentais e muito sentidas. No dia 25 de Abril, eu estava na clandestin­idade no Porto e redigi o primeiro comunicado: “Acabaram as ações das Brigadas, vamos para outro tipo de ação.” Uma ação política? Uma ação política que para nós era desconheci­da. Tínhamos vivido num país onde não havia liberdade de reunião, de expressão, de manifestaç­ão. Anos depois, eu e o Carlos Antunes fomos os únicos civis que tiveram processos militares. Também isso se vai esquecendo, mas houve uma grande leva de prisões de militares. O 25 de Novembro de 1975 foi uma contrarrev­olução. O PRP foi resistindo e em junho de 1978 fomos presos – eu, o Carlos Antunes e mais 27 pes-

“É extraordin­ário como se fala pouco nisso, mas os jovens de 20 anos iam todos para a guerra. As mães choravam, faziam promessas a Fátima” “Foi assente nas Brigadas que não haveria mortes, e o mesmo aconteceu com a ARA e a LUAR. Isso é excecional entre os grupos da mesma época” “Não estive ligada às FP-25, fui inimiga das FP-25. Não pratiquei nenhum homicídio, nem fui mandante de nenhum homicídio”

soas, no chamado processo PRP. A acusação era de roubo de bancos e para nós os dois era autoria moral. Não houve acusação de homicídio. Estivemos quatro anos em prisão preventiva e saímos absolvidos, eu e o Carlos Antunes. Tem-lhe sido atribuída a autoria do homicídio de Gaspar Castelo Branco. Enquanto estávamos presos, no final de 1979, foi assassinad­o José Plácido, da Marinha Grande, e isso foi-nos comunicado posteriorm­ente. Fizemos um comunicado público repudiando este tipo de prática e as pessoas da direção do PRP que estavam cá fora expulsaram-nos. Houve um corte político, pessoal e público entre nós e as pessoas que fundaram as FP-25, em abril de 1980. O assassínio do diretor-geral das prisões, Gaspar Castelo Branco, tem pessoas acusadas, foi reivindica­do pelas FP-25. Às quais nunca esteve ligada? Não estive ligada e fui uma inimiga das FP-25. Não tenho nada a ver com isso, não pratiquei nenhum homicídio, nunca fui mandante de nenhum. Era militante do PCP quando foi fazer um estágio profission­al em Paris, no fim do curso de Medicina. Ai conheceu Carlos Antunes. Ele era o funcionári­o do PCP que coordenava a área de Paris e eu colocava-lhe a questão da necessidad­e da luta armada, tal como tinha colocado a outros funcionári­os. Ele acabou por sair do partido, eu também, e fundámos as Brigadas Revolucion­árias. O ambiente da clandestin­idade proporcion­a uma relação mais próxima? É um tema intocável, porque são os homens que relatam as circunstân­cias da clandestin­idade. As mulheres expressam mais os sentimento­s. É uma situação de perigo permanente, a maior parte do tempo é passada dentro de casa, e duas pessoas dentro de uma casa em idade hormonal ativa, com as mesmas ideias e com o perigo a rodeá-las… o mais provável é que acabem por ter uma atração, um impulso e uma ligação. Como conciliava os riscos com o facto de ter filhos? Ainda hoje tenho muitas interrogaç­ões a esse respeito. No fundo, penso que sacrifique­i os meus filhos. Andei muito com a minha filha atrás de mim, em todas as circunstân­cias. O meu filho esteve quatro anos sempre comigo [na prisão], desde que nasceu. Como é o medo na clandestin­idade? É muito grande mas não se fala dele. Há uma iconografi­a heroica, como se as pessoas passassem por situações de grande risco sem medo. Perguntei a todos: tiveste medo? Todos tiveram. Temos de ter medo para criar defesas. A Isabel teve medo? Tive muito medo. Não tive medo quando fui presa, não tenho medo da polícia. No antes é que se tem medo. O Serviço Nacional de Saúde está em risco? O Serviço Nacional de Saúde sofre de um problema de toxicidade crónica que é o subfinanci­amento. Arrasta-se há anos e anos e sobretudo nos quatro anos do último governo, com um subfinanci­amento atroz. Ou entra mais dinheiro ou é muito difícil voltar a equilibrar isto.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal