O desamparo de quem não queria “andar a estender a mão”
Em Oliveira do Hospital, o sentimento é “de abandono e indignação”. Autarca diz que apoio é manifestamente insuficiente
José não se deixa abater mesmo quando parece abatido. Todos os dias regressa à sua quinta, às ruínas da casa onde morava há meio século, ao sítio onde o fogo lhe roubou a mulher. Em volta, está quase tudo ardido – só o cão sobreviveu. “Tenho aqui muito que fazer”, diz, com tanto de vontade como de desamparo. O viúvo, de 72 anos, é um dos exemplos do “sentimento de abandono e indignação” – palavras do presidente da Associação das Vítimas do Maior Incêndio de Sempre em Portugal, Luís Lagos – que persiste, um mês depois, nas regiões afetadas pelos fogos de 15 de outubro.
“Estou revoltado. O presidente da câmara não pode, mas há outras pessoas que deviam fazer mais. Havia de ser menos paleio e mais obra”, dispara José Marques, de pulôver cinzento sobre a camisa preta que lhe cola o luto à pele. No lento fim de tarde de Vila Pouca da Beira (concelho de Oliveira do Hospital, onde faleceram 12 das 45 vítimas mortais dos incêndios de outubro), o viúvo faz contas à vida: às dívidas que tem para pagar (“ardeu-me o dinheiro – não era muito, mas tinha algum em casa –, tive de andar a comer fiado e fiquei a dever remédios na farmácia”), às ferramentas de que precisava para reabilitar os terrenos em volta da quinta, às ajudas que preferia não ter de utilizar. “O povo português é solidário mas custa-me andar a estender a mão”, explica.
José, que não ficou sem teto (pois tinha outra moradia, menos equipada, na freguesia vizinha de Avô), relativiza a sua situação: “Há tantos casos como o meu... isto é como um chefe de família que tem muitos fi-
lhos de roda dele e não tem comer para dar a todos.” No entanto, a indignação é comum aos demais. “Há familiares que não foram contactados por ninguém, com um grande sentimento de injustiça e de revolta. As pessoas olham para si próprias como portugueses de terceira (de segunda já se sentiam, por pagarem o preço da interioridade...)”, diz Luís Lagos. O presidente da associação das vítimas diz: “Quase todo o trabalho no terreno tem sido feito pelas autarquias locais.” E Oliveira de Hospital – onde ficaram total ou parcialmente destruídas 180 casas de primeira habitação e 95 empresas sofreram danos no valor de cem milhões de euros – é exemplo disso. “Temos cerca de 20 habitações em reconstrução e 10 estão prontas. Todas as vítimas estão a ser acompanhadas diariamente, com entrega de alimentação e bens materiais. Estão também a receber apoio psicológico, nos casos em que é necessário. E foi criado um fundo financeiro de emergência social para acudir às situações de pessoas que ficaram sem nada”, descreve o presidente do município, José Carlos Alexandrino.
No entanto, a resposta estatal não chega. “Os apoios anunciados pelo governo são manifestamente insuficientes para uma catástrofe desta dimensão”, sublinha o autarca, mostrando-se “preocupado” com os apoios para o setor agropecuário, que “são muito inferiores aos que estão definidos para outras empresas” [uma comparticipação de 50% para danos superiores a 50 mil euros, quando na indústria o apoio é de 85%]. O mesmo lamenta Luís Lagos, recordando que nem os apoios para a indústria são iguais aos fixados após os incêndios de junho em Pedrógão Grande. “Em risco estão quase 500 postos de trabalho. Isto num concelho com 20 mil habitantes, como Oliveira do Hospital, é arrasador”, adverte.
Por tudo isso, um mês depois, emVila Pouca da Beira ninguém esquece aquelas horas de aperto: fica o susto de quem “em 70 anos nunca tinha visto algo assim”, como Mário Amaral; fica o lamento de quem viu “todos os terrenos de cultivo, árvores de fruto e alfaias agrícolas destruídos pelo fogo”; como Maria do CarmoVenâncio; e, acima de tudo, fica o desamparo de José Marques: “Com a idade que tenho, já passei por muita coisa, mas não esperava passar por esta. Aqui, perdi tudo.” RUI MARQUES SIMÕES