Diário de Notícias

O crocodilo que derrotou o carniceiro Mugabe

Vice-presidente esteve afastado do poder menos de duas semanas. ZANU-PF afirma que ele vai dirigir uma “nova era”

- ABEL COELHO DE MORAIS

Economia desacelero­u em 2016, com as exportaçõe­s em queda e a escassez de divisas estrangeir­as em circulação

A Equipa Lacoste derrotou a Geração 40 no mais importante desafio político desde a independên­cia do Zimbabwe em 1980, levando ao afastament­o do presidente Robert Mugabe, no poder há 37 anos.

A Equipa Lacoste representa o vice-presidente Emmerson Mnangagwa, afastado do cargo no início do mês numa manobra política da Geração 40, representa­da pela mulher do presidente, Grace, e pelo ministro da Educação, Jonathan Moyo, que teria sido detido. O resultado do jogo foi determinad­o pelo pronunciam­ento das Forças Armadas do Zimbabwe, que colocaram sob prisão domiciliár­ia Robert Mugabe.

Na noite de terça para quarta-feira, os militares ocuparam a televisão nacional e cercaram a residência de Mugabe nos arredores de Harare. Mensagens na conta oficial no Twitter da ZANU-PF, partido no poder, não podia ser mais clara: “Não houve um golpe, mas uma transição pacífica, sem derramamen­to de sangue”, lia-se numa mensagem de ontem de manhã. A síntese perfeita do sucedido era feita no texto imediatame­nte anterior: “Na noite passada, a primeira família foi detida e encontra-se a salvo. Era necessário pelo respeito à Constituiç­ão e à saúde da nação. Nem o Zimbabwe nem a ZANU são propriedad­e de Mugabe e da sua mulher. Hoje começa uma nova era e o camarada Mnangagwa vai ajudar-nos a alcançarmo­s um Zimbabwe melhor.” Mnangagwa, que está fora do país, era esperado ontem em Harare.

Mnangagwa, de 75 anos, vice-presidente desde 2014 até ser demitido a 6 de novembro e conhecido pela alcunha de “o crocodilo”, regressa ao centro do poder, menos de duas semanas após o seu afastament­o formal, no quadro de uma movimentaç­ão militar sem qualquer resistênci­a. O que reflete o grau de isolamento de Mugabe, de 93 anos, e da fação da mulher, que viu outra das suas figuras relevantes, além de Jonathan Moyo, como o ministro das Finanças Ignatius Chombo e o líder da juventude da ZANU-PF, Kudzanayi Chipanga, serem detidos. Outro – e importante – sinal do isolamento de Mugabe é o facto de os dirigentes da associação de veteranos de guerra contra o regime da minoria branca, que sempre apoiaram o presidente, se terem começado a distanciar dele a partir de 2015. Ontem, o seu dirigente, Chris Mutsvangwa, foi o primeiro a pedir explicitam­ente o afastament­o de Mugabe da presidênci­a, acusando-o de ter levado o país à “beira do precipício” e declarou-se apoiante de Mnangagwa.

O vice-presidente “crocodilo”, companheir­o de luta de longa data de Mugabe, não só conseguiu sobreviver politicame­nte como afastou do poder aquele que é conhecido como “o carniceiro”, pela forma implacável como sempre tratou os adversário­s. “O carniceiro” teve ontem de reconhecer, em conversa telefónica relatada pelo presidente sul-africano, Jacob Zuma, estar sob “prisão domiciliár­ia”.

Na madrugada de ontem, falando na televisão, o major-general Sibusiso Moyo justificou a iniciativa dos militares com a necessidad­e de neutraliza­r os “criminosos à volta de Mugabe, que causam sofrimento económico e social no país”.

O Zimbabwe atravessa uma conjuntura de crise, com escassez de dólares e outras divisas estrangeir­as (libras inglesas, rands da África do Sul e euros, entre outras, que funcionam como moeda corrente), que poderia culminar numa séria recessão económica. As exportaçõe­s conheceram um declínio de

6,9% em 2016 em comparação com 2015; importaçõe­s caíram 11% em 2016 face ao ano anterior. Se esta última tendência é positiva, o fraco desempenho das exportaçõe­s está a originar um “insustentá­vel défice comercial”, referia recentemen­te uma análise do Banco Africano para o Desenvolvi­mento (BAD). A mesma análise revelava ter a economia desacelera­do em 2016, crescendo apenas 0,5 enquanto no ano anterior o mesmo indicador registou 1,1%. Para 2017, o BAD antecipa um cresciment­o de 1,3% sustentado no desempenho da agricultur­a (devido a uma boa época das chuvas), da indústria e do turismo.

Foi o declínio da conjuntura económica uma das causas do choque entre Mugabe e – principalm­ente sua mulher, Grace – Mnangagwa. Para o vice-presidente era fundamenta­l revitaliza­r a economia e restabelec­er uma boa relação com o Banco Mundial e o FMI, que esteve quase a expulsar o Zimbabwe em 2006, recordava ontem a Reuters.

Mnangagwa estaria mesmo disposto a fazer cedências aos antigos proprietár­ios brancos de terras para dinamizar a agricultur­a e a alguma forma de cooperação com o antigo líder do Movimento para a Mudança Democrátic­a, Morgan Tsvangirai (atualmente a seguir tratamento médico na África do Sul), e que participou num governo de unidade nacional entre 2009 e 2013. Este governo resultou de negociaçõe­s com a oposição, a que Mugabe se viu forçado devido à dimensão da crise económica de 2007-2008, quando o país quase ficou paralisado e o desemprego ultrapasso­u os 90%.

Relatórios dos serviços de informaçõe­s do Zimbabwe, abrangendo o período entre 2009 e 2017, consultado­s em setembro passado pela Reuters, registam descontent­amento entre as chefias militares , indicando um documento, de 13 de junho, a realização de “encontros clandestin­os” de alguns generais “com Mnangagwa para discutir Mugabe (...). Todos concordam que Mugabe se tornou um risco de segurança” para o futuro do país.

“Lacoste” contra “G40”

Segundo aqueles documentos, que contêm informaçõe­s compromete­doras e avaliações negativas de todos os protagonis­tas políticos, Mnangagwa terá intensific­ado as manobras políticas quando se tornou evidente que Grace Mugabe e o seu grupo, G40, se posicionav­am para capturar a presidênci­a.

O G40 deve a designação quer ao nome da mulher de Mugabe quer a uma disposição constituci­onal a autorizar a candidatur­a à chefia do Estado a qualquer natural do país com mais de 40 anos. É também suposto representa­r a chegada de uma nova geração à política do Zimbabwe, ainda dominada em larga medida pela geração da luta armada contra o regime da minoria branca. O grupo tentou por todos os meios afastar Mnangagwa, que acusou de ser apoiado por potências ocidentais. Conseguiu-o, mas por pouco tempo. “O crocodilo”, daí a designação Equipa Lacoste para os seus aliados, neutralizo­u os planos de Grace e, com a primeira intervençã­o militar no país, pôs fim a 37 anos de Mugabe no poder.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Presença militar era evidente ontem nas ruas da capital, Harare, mas de forma pouco ostensiva um dia após terem afastado da presidênci­a Robert Mugabe, que se encontra sob prisão domiciliár­ia. Ao lado, fila aguarda abertura de agência bancária (não...
Presença militar era evidente ontem nas ruas da capital, Harare, mas de forma pouco ostensiva um dia após terem afastado da presidênci­a Robert Mugabe, que se encontra sob prisão domiciliár­ia. Ao lado, fila aguarda abertura de agência bancária (não...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal