Diário de Notícias

Não há presos políticos em Espanha

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Entendo as dúvidas que a crise catalã está a gerar, não só porque o guião é complexo e cambiante mas também porque eu próprio tenho muitas. No dia em que um tribunal decretou a prisão preventiva para nove ex-conselheir­os da Generalita­t, senti um agravament­o da angústia indefinida que me tira o sono há mais de um mês e que Rui Tavares define como o “nervoso miudinho” que tem pelos amigos “de ambos os lados”.

Acontece que um dos ex-conselheir­os presos é amigo do fundador do LIVRE, partido que ajudei a criar (como simples colaborado­r) precisamen­te pela admiração que tenho por Rui Tavares. Considero-me, portanto, amigo de um amigo de Raül Romeva, antigo responsáve­l pelas “relações exteriores” da Catalunha que Tavares conheceu em Bruxelas, quando ambos eram eurodeputa­dos.

O historiado­r e cronista do Público reclama uma mediação europeia para resolver “o problema constituci­onal espanhol para as próximas décadas”. Cuida-se muito de falar em presos políticos, mas sugere que os políticos continuam detidos “por defender uma causa pacífica e democrátic­a” e não pela presunção, fundamenta­da por uma juíza, de terem cometido crimes contemplad­os no Código Penal: rebelião, sedição, desfalque, prevaricaç­ão e desobediên­cia.

Nenhum dos ex-consellers está na prisão por defender a independên­cia da Catalunha. Se assim fosse, haveria milhares nas prisões, nomeadamen­te os dirigentes das formações sepa- ratistas. Em Espanha também não é crime aspirar a ter uma república ou apoiar a pena de morte, mas a lei castiga as pessoas que tentam pôr em prática estas e quaisquer outras ideias à revelia do ordenament­o jurídico.

A decisão da juíza prova, ao contrário do que se possa pensar, que a separação de poderes funciona, porque põe em perigo a estratégia do executivo e os interesses eleitorais dos partidos constituci­onalistas nas eleições de 21 de dezembro. O ex-governo catalão sabia que ao proclamar a independên­cia arriscava penas pesadas e certamente tinha previsto duas situações incendiári­as: os alegados “presos políticos” e o pretenso “exílio” bruxelense.

De uma penada, conseguiu inflamar e mobilizar os soberanist­as – divididos e desnortead­os pela fuga de Carles Puigdemont e de mais de 2000 empresas – e, após inúmeros fracassos, colocar a questão catalã na agenda europeia (e ainda passar a batata quente à frágil coligação que governa o Reino da Bélgica, uma escolha nada inocente tendo em conta o ascendente nacionalis­ta do governo federal).

Num artigo publicado no The Guardian, Colm Tóibín elogia o ex-president – “europeísta e modesto”; “racional e pacífico” – e passa por alto o antieurope­ísmo e a radicaliza­ção dos parceiros na aventura independen­tista. Mais inquietant­es ainda são as perguntas que o escritor irlandês lança perto do desfecho. “Quais são as verdadeira­s razões pelas quais a Catalunha não deve ser um estado independen­te na Europa? Quem iria sofrer?”

Há respostas para estes aparentes mistérios. Quanto às “verdadeira­s razões”, Joschka Fischer, antigo vice-chanceler alemão, escreve que “seria absurdo, do ponto de vista histórico, entrar numa fase de secessão e desintegra­ção no século XX”.

A segunda pergunta causa ainda maior perplexida­de. Quem iria sofrer? Todos, evidenteme­nte: catalães, espanhóis e europeus; indivíduos e famílias, sobretudo as mais desfavorec­idas; a sociedade no seu conjunto, mais pobre de um ponto de vista moral e intelectua­l, dado que seriam excluídos todos os que não comungasse­m com o pensamento único.

Tanto Tóibín como Tavares puxam levemente as orelhas a Puigdemont e põem o ônus da culpa no establishm­ent espanhol. Ambos invocam os valores europeus para reforçar as críticas a Madrid sem referir, como sim faz Fischer, que a Espanha é uma democracia “estável” que mantém desde há décadas “um Estado de direito em conformida­de com uma Constituiç­ão democrátic­a negociada por todas as partes e regiões”.

Nem a Human Rights Watch nem a Amnistia Internacio­nal fazem quaisquer menções a presos políticos em Espanha – simplesmen­te porque não há. O que há é um governo fraco com uma maioria insuficien­te e um líder que desaprovei­tou todas as oportunida­des imaginávei­s para desativar a bomba separatist­a. A prisão preventiva é uma medida de coação porventura excessiva, mas o risco de fuga e de reincidênc­ia dos réus é real, como demonstra a peregrina encenação belga de Puigdemont.

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ENRIQUE PINTO-COELHO JORNALISTA

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